quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A capoeira, o poder público e o fantasma dos maus capoeiras...



A cada nova experiência que vivenciamos em nossas tratativas de interface com o poder público, vemos sempre a capoeira ser testada em sua mais emotiva visão: a de se fazer representar perante tais poderes e não buscar evidenciar suas limitações, reais ou imaginárias, enquanto comunidade organizada que é um pressuposto nesse tipo de relação.
Essas inúmeras vezes em que vimos esse diálogo acontecer, ficou patente que temos sempre um problema que vagueia o subconsciente coletivo dos capoeiristas, que é a existência constante de uma referência e da busca da punição, controle ou simples extirpação desse contexto dos maus capoeiristas...
Esses personagens consomem uma energia incrível de nossos esforços na busca de dialogar com os órgãos públicos e representam o nosso mais inevitável e lamentável subconsciente coletivo, que é para onde sempre enviamos ou resgatamos esse personagem, produto principalmente de nossas limitações enquanto organização ou instituição capoeiristica.
É óbvio que em qualquer grupo humano existem os bons e os maus profissionais.
Não se trata de negar isso.
O que temos que perceber é o quanto nos custa essa luta constante com eles, aliás, sempre ausentes nesses debates... por razões óbvias também sabemos porque eles estão sempre ausentes:
 primeiramente porque, caso estejam presentes irão, obviamente, se identificar como parte dos que são do bem...
 também por ser muito difícil fazer uma acusação frontal, do tipo: você é do grupo dos maus capoeiras... obviamente se isso acontecer iremos ter um outro tipo complicado de situação, que será de um desequilibrado bate-boca entre os participantes de qualquer reunião;
 devemos e precisamos perceber que enquanto não houver um esclarecimento público a respeito da ética capoeiristica, ficará sempre muito difícil decidir quais serão os bons e os maus... por exemplo, os capoeiristas mais tradicionais e conseqüentemente menos violentos ou agressivos em seus estilos de jogo e didática, são hoje taxados de sarobeiros, que na verdade é algo de significado impreciso, provavelmente servindo antes para discriminar estilos e condutas menos performáticas;
 se detivéssemos a clareza suficiente para identificar quais seriam os maus capoeiras, estaríamos aí diante de um outro dilema: quais os elementos para se fazer um julgamento deles...? ou seja, se estiverem incorrendo em alguma forma de crime, como assédio sexual, exploração sexual de menores, lesões corporais, etc., eles já estarão devidamente enquadrados como criminosos, passivos de punição pela legislação penal... a comunidade da capoeira não tem que substituir esses códigos e essas leis para resolver esses problemas, obviamente isso seria uma inocente tentativa de fazer justiça com as próprias mãos;
 supondo que se chegue a conclusão de que se trata, enfim, de um mau capoeirista, segundo critérios mais clássicos de se avaliar as condutas tradicionais da capoeira, como questões de auto-graduação; sistemas de treinamento; tratamento agressivo com alunos ou capoeiristas de outros grupos (diversas formas de incentivo à xenofobia relativamente comum dentro dos grupos de capoeira). formas presunçosas de se auto proclamar detentor deste ou daquele mérito; uso indevido de conhecimentos e patentes de movimentos, toques, músicas, técnicas, etc.; ou mesmo o incitamento de alunos ao estilo de jogo mais agressivo ou violento... quem, na representatividade da capoeira irá julgar esses casos?? Segundo que critérios?? Quem pode se dizer detentor dessa verdade e dessa norma??
 Em caso de admitirmos que não podemos julgar esses eventos dentro da capoeira, por que levar esses dilemas para um foro envolvendo terceiros? no caso o poder público nada pode fazer quando nós mesmos temos dúvidas sobre o que é legitimo e o que não é.
 Há um outro aspecto que fica muito patente nessas discussões que é quanto ao desgaste que as reuniões sofrem por causa desse tema... é incrível como os capoeiristas deixam que esses fantasmas roubem nossa energia quando estamos diante de uma oportunidade inédita (como nos fóruns do pró-capoeira, nos congressos realizados pelo Ministério do Esporte, entre outros). Vale nesse caso a sabedoria de grandes mestres que sempre disseram: não fale do diabo porque ele aparece... em outras palavras nós os valorizamos quando permitimos que ocupem nosso tempo dentro de tão raras oportunidades.
Fica claro para nossos interlocutores do poder público que a capoeira tem um grande problema por causa de seus maus representantes e, no entanto, sabemos que isso representa uma minoria que sequer deveria ser tão considerada, senão vejamos:
o Sabemos que a estatística de problemas graves envolvendo a capoeira é muito menor do que muitos outros esportes;
o Sabemos que mesmo os ditos maus são tantas vezes responsáveis por grandes projetos dentro da capoeira e tantas vezes produzem grandes atletas, os quais acabam por perceber que estão no lugar errado e buscam outros espaços para seu aprendizado e crescimento, ou mudam de atitude por seus próprios critérios;
o Sabemos ainda que estamos hoje diante de uma série de estímulos do mercado de lutas, que levam muitos mestres e professores a buscarem a marcialidade da capoeira como seu principal interesse... muitas vezes exclusivamente por uma questão de sobrevivência econômica e financeira... quem pode, de sã consciência, punir por isso ou condená-los? Temos que ter em conta a liberdade de escolha de estilo e de prioridade de foco de cada um;
o Quanto aos sistemas de graduação que possam parecer a alguns sem mérito ou sem sentido, não cabe a nenhum de nós questionar, a menos que seja dentro de fóruns íntimos da própria capoeira, onde esse assunto possa ser discutido, de preferência dentro da mesma entidade a que pertençam os atores da discussão, sempre lembrando que isso é uma das mais históricas polêmicas dentro da capoeira e que ninguém pode se considerar o detentor da verdade ou da razão inquestionável, pois se trata de um tema delicado e impreciso, já conhecido de todos nós, cuja solução é, além de muito difícil, um eterno pomo da discórdia entre pessoas que muitas vezes partilham visões e interesses comuns, imagine num sentido mais amplo como cheguei a ver durante uma reunião do Pró-Capoeira do Ministério da Cultura, um dos grupos temáticos incluiu que o governo devia “implantar um sistema de graduação unificado”... será que estamos pedindo ao governo para nos impor algo assim?
o Vale lembrar que não faz diferença praticamente nenhuma para uma questão cultural que envolva a capoeira a questão da “graduação”, esse conceito foi introduzido pelo Mestre Bimba em um determinado contexto histórico e isso nos foi legado por ele como uma recurso de organização de nossa instituição capoeirista, seja por razões administrativa, econômica ou mesmo hierárquica, isso jamais deveria ter se tornado um cavalo de batalha onde tanta energia já se perdeu, a livre manifestação cultural da capoeira é uma de suas premissas, e direitos;
o Vista sob a ótica desportivizante, a graduação tampouco é uma exigência de nenhum comitê olímpico ou marcial, onde são considerados, apenas, categorias compostas de idade e peso... no máximo estilos... ou seja, mais uma vez sabemos que essa discussão é estéril e desnecessária... a não ser, claro, para grupos que partilhem de uma mesma organização, seja uma associação, federação, liga, escola, etc...
o Muitos poderão entender que estejamos defendendo o caos na capoeira, perdoe-me os que assim pensam, mas estou apenas defendendo a razão no lugar de uma emoção infantil e estéril que a nada serve, mormente em locais e na presença de representantes do governo, muitas vezes interessados apenas em entender como podem ajudar a capoeira.

Fato é que temos que amadurecer nossa capacidade de dialogar com o poder público, seja porque temos antes de mais nada um direito de fato relacionado com essa relação entre a capoeira e ele (o poder público), seja porque muitas vezes as pessoas que estão participando de uma reunião conosco – a maioria das vezes técnicos-burocratas do governo, não possuem a mínima condição seja de resolver nossas questões históricas e muito menos de encontrar para nós os nossos fantasmas do mau...
Se não tivermos essa consciência e essa maturidade, qualquer diálogo será muito difícil e as nossas expectativas de participação no bolo do orçamento público será algo que teremos que esperar muito mais tempo até que possam se materializar como algo sólido para nós, os capoeiristas, os mestres, os professores, os estudiosos do assunto, os produtores, os patrocinadores, os alunos, os parceiros, os interessados em nosso trabalho dentro de escolas e outros espaços públicos.
Enfim a nossa maturidade profissional é um requisito para uma negociação mais racional e menos emocional com qualquer instituição ou poder público

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Uma Lei Orgânica para a Capoeira


Mestres de Brasília-DF, estão desenvolvendo gestões e promovendo reuniões junto à Frente Parlamentar da capoeira, visando produzir em conjunto com os parlamentares que fazem parte da referida Frente, reflexões que possam tornar efetiva a sua atuação.

O entendimento que temos é de que a ausência dos capoeiristas na sua atuação de uma Frente Parlamentar que representa totalmente o nosso interesse, irá esvaziá-la, podendo até tornar nulo ou limitar muito o seu papel e seu propósito.

Nesse sentido, fizemos pessoalmente uma proposição junto ao Gabinete da Presidência da Frente pela capoeira, no sentido de que a mesma possa realmente se encarregar de levar adiante algumas questões basilares que nos afligem, promovendo um trabalho que realmente represente todos os segmentos da capoeira, cuja premissa essencial é a diversidade, que será a norte fundamental de qualquer tentativa de produzir políticas publicas para a nossa Arte.

Desconhecemos de onde surgiu a bandeira da capoeira como processo exclusivamente desporto-competitivo-olímpico, que parece estar norteando as ações do programa Pró-capoeira, do Ministério da cultura através do IPHAN, e que foram objeto de protesto feito através do manifesto dos capoeiristas de Salvador-BA, mas entendemos que realmente não podemos nos calar e simplesmente ir aceitando essas abordagens mais confusas ou limitantes que vão sendo articuladas no caminho da produção de salvaguardas, onde os verdadeiros interesses ficam pouco claros para grande maioria de nós capoeiristas.

Entendemos que o primeiro passo deva ser a produção de uma Lei Orgânica, onde se obtenha o consenso para uma visão organizada da capoeira, como conceito, enquadrando suas facetas mais relevantes, agrupando os atores que compõem e sustentam tais facetas; os órgãos do poder público que tem relações e interface com essa comunidade; as questões econômicas e legais típicas desse lado da capoeira; e também os instrumentos de regulação típicos que atendam aos interesses dessa face da capoeira, particularmente as políticas públicas mais importantes que se destinarão a essa comunidade.

A ausência de uma tal Lei Orgânica, que regule e que caracterize a capoeira, deixa espaço para todo tipo de ação desencontrada, limitada ou tendenciosa, que buscam atender sempre segmentos específicos da comunidade da capoeira, deixando de fora outros tantos atores, segmentos, profissionais, mercados de trabalho, legislações especificas, políticas públicas omissas, etc., e isso sempre tem acontecido.

Vamos descrever a seguir alguns problemas típicos que temos visto surgirem no caminho dessas leis e instrumentos de políticas públicas segmentadas e focadas no senso estrito de algumas questões ou de públicos restritos dentro da capoeira, entre eles os envolvidos na capoeira confederada ou desportivizada, ou mesmo ações relacionadas com o apoio aos chamados “grupos de capoeira” onde pela influência pessoal alguns capoeiristas e mestres conseguem obter algum tipo de apoio ou vantagem, sendo que as leis e instrumentos (portarias, decretos, rubricas, etc.) até aqui produzidas apresentaram, entre outros, os seguintes problemas:

Leis segmentadas ou com visão limitada, produzindo vetos e restrições

Entre as leis já apresentadas ou aprovadas, algumas foram inclusive vetadas totalmente pelo Presidente da República, depois de anos de uma desgastante tramitação pelo Congresso Nacional, porque traziam em sua proposta a submissão de toda a capoeira, todos os seus segmentos, já que não especificava nada, ao julgo de duas instituições apenas, as quais passariam a exercer um poder sem precedentes sobre a capoeira.

Muitos criticaram a atitude do Presidente, mas infelizmente parece que ele estava certo, pois não podemos entregar a capoeira para o poder e o arbítrio de nenhuma “autoridade” totalitária, pois ela pertence ao povo brasileiro a ele cabe decidir seu destino!

E isso só para citar uma única tentativa de se legislar sobre a capoeira... Outras leis que possam ter prosperado e chegado à alguma conclusão tratam de assuntos sem relevância ou abrangência, como datas comemorativas, a desvinculação da capoeira do CONFEF, etc.

Não podemos mais perder tempo com esse tipo de lei... que só seriam redigidas com visões limitadas, interesses estranhos, enfim, leis que só iriam dividir os capoeiristas entre incluídos e excluídos...

Não é raro na capoeira e a maioria de nós sabe exatamente que isso acontece, onde ações, portarias, e mesmo leis, são redigidas com o objetivo de favorecer grupos específicos. Isso acontece muito em leis produzidas no âmbito de Estados e Municípios, justamente porque não existe uma lei maior, ou seja, uma Lei Orgânica para organizar e sistematizar a discussão em torno da capoeira. Justamente isso o que buscamos

Falta de sistematização

A produção de leis isoladas e não evolutivas, que tampouco que permitam sua manutenção, de acordo com a evolução do próprio debate, da entrada de atores importantes ou dos desdobramentos que a mesma deva ter, engessa essa legislação. Inibe a ampliação das discussões, dificulta ou mesmo impede que os assuntos sejam tratados em outras perspectivas ou outros segmentos. A sistematização é uma das premissas da Lei Orgânica.

Sistematização quer dizer que seja organizada de modo sistêmico, possuindo a capacidade de ser mantida, expandida, esteja aberta a aceitação de novos participantes, de novos atores, outras questões, já que sua primeira visão é genérica, mas é abrangente.

Ações pouco transparentes do poder público

As ações do poder público destinadas à capoeira são sempre um grande mistério. Ou, melhor dizendo, tem sempre alguém que toma conhecimento, é muitas vezes quem alimenta os órgãos de informações e bases conceituais e dados que são usados para a confecção dos artefatos legais, portarias, decisões, ou o que for.

Esse tipo de comportamento já muito conhecido dos capoeiristas. Já vimos projetos destinados a inserção da capoeira na escola serem feitos e coordenados por mestres de capoeira, que não compartilharam nada do que foi feito com a comunidade, tendo ele mesmo ou seus alunos ocupado os espaços, cargos, locais de aula, etc.

Naturalmente numa situação assim os interessados mantém todo o aparato de atitudes e subsídios que permitam que as decisões e ações seja executadas mas não compartilham essas informações, atitude muito comum por quem recebe os benefícios dessa legislação ou ações de governo.

Todos nós sabemos que a nossa tradição política é essa: você está comigo eu te apoio, se não está não te conheço! Assim age grande parte dos nossos gestores públicos. Alguém duvida?

Desconhecimento no Legislativo

O Congresso Nacional instância maior da representatividade dos interesses do provo brasileiro, e nesse sentido todos nós, independentemente de que profissão exercemos, que esporte praticamos, oficio que exercemos, ideologias que sigamos, sempre teve suas prioridades, seus lobistas atuando, suas negociações e tantas outras coisas que não entendemos ou não participamos, ou pior ainda, nem sabemos que ocorre.

No caso da capoeira o que fica mais patente quando conversamos com qualquer legislador, seja deputado, senador, vereadores, prefeitos, etc., é que eles desconhecem solenemente a capoeira e suas questões, seus desdobramentos... Uma lei orgânica conceitua, caracteriza, define envolvidos, define atores do governo, define políticas típicas para cada segmento, e essa é uma das funções de uma Lei Orgânica: levar o Congresso a conhecer melhor a capoeira e poder se envolver com ela, sabendo que ela tem essa e aquela faceta, este e aquele ator, essa ou aquela questão.


Essa abordagem evitará a produção de leis excludentes como tem acontecido, que se propõem de maneira equivocada a tratar da capoeira, numa totalidade falsa, ou que não aceita a premissa da diversidade que a capoeira representa.

Falta de transparência das ações de governo

A falta de uma legislação para a capoeira, permite que setores e entes públicos usem de suas visões para decidir arbitrariamente sobre assuntos e questões da capoeira, tais como o uso de espaços públicos, a contratação de pessoas (acabamos de ver um processo de contratação acontecer no âmbito do MINC/IPHAN que ninguém sabe quais foram os critérios utilizados para escolher os chamados “consultores” que foram contratados para a implantação da capoeira como patrimônio cultural brasileiro. Alguém sabe?)

A liberação para uso de espaços públicos, ou de verbas para projetos e viagens de capoeiristas, o patrocínio de entidades governamentais, entre tantas outras ações do poder público, nos deixam ver claramente que não existe conhecimento ou clareza nas ações que envolvem a capoeira, onde algo que poderia ser perfeitamente licitado, ou pelos menos projetos que poderiam ser selecionados a partir de critérios do conhecimento geral, são simplesmente ocultos esses critérios.

As ações do recente projeto do Ministério da Cultural, no seu programa “capoeira viva”, vimos pessoas e entidades serem contempladas com recursos públicos utilizando para isso de critérios que pessoalmente desconheço, sendo inclusive que uma vez me dirigi aos gestores desse programa, perguntando se teria acesso pelo menos aos projetos que foram aprovados e quais os critérios usados e me foi respondido que não fazia parte do processo fornecer esse tipo de informação.

Enfim, a idéia de existir uma Lei Orgânica se destina a tratar e contornar todas a maioria dessas questões acima enumeradas.

Embora o próprio texto da Lei ainda não tenha sido iniciado em sua confecção, trabalho esse que já está sendo entabulado junto à Frente Parlamentar, já existem alguns aspectos da mesma que deverão ser considerados para sua confecção, atributos e requisitos que a tornará realmente acessível e abrangente e facilmente compreendida por todos os capoeiristas.

Sua proposta deverá considerar e incluir as seguintes premissas e características em seu bojo:

 Simplicidade
 Abrangência
 Clareza
 Riqueza de elementos norteadores
 Estratégia política
 Aplicabilidade
 Inclusividade/diversidade


Essas condições deixam claro que não podemos mais ser submetidos a abordagens que privilegiem visões acadêmicas ou herméticas, ou seja, abordagens em si mesmas excludentes ou pouco claras, que não permitam uma compreensão abrangente e sem intermediários de parte dos capoeiristas.

Por isso é que estamos trabalhando junto à Frente para que possamos subsidiar o trabalho que a mesma irá desempenhar e com isso evitarmos que o descaminho e até a nulidade de suas ações possam acontecer.

A essência da proposta da Lei Orgânica para a capoeira, terá como primeira meta a de organizar o sistema envolvido na capoeira em sua abrangência e que possa identificar as diversas questões e os diversos atores e envolvidos, montando assim um primeiro instrumento jurídico efetivo com a validade e a abrangência que caracterize a capoeira em sua diversidade, seus segmentos e suas questões especificas.

A intenção dessa proposta é demonstrar e agir sob a perspectiva de que não se deva colocar numa mesma receita questões de natureza acadêmicas, culturais, ancestrais, desportivas e outras, admitindo que exista um segmento interessado em cada uma dessas faces de nossa Arte.

A proposta busca resolver um problema técnico e sistêmico da legislação que deverá ser aplicada à capoeira, revelando antes de tudo sua conceituação e seus desdobramentos temáticos, facilitando com isso o seu entendimento e permitindo a produção de leis e instrumentos de políticas públicas e ou privadas que se ocupem de cada uma das especificidades que envolvem nossa arte.

Assim sendo, essa Lei Orgânica, terá como intenção atender as seguintes justificativas básicas:

 Produzir perspectivas para a FPC - Frente Parlamentar da Capoeira;
 Criar salvaguardas legais para a capoeira em todos os seus aspectos e interesses específicos;
 Oferecer elementos ao Legislativo para compreender a abrangência e profundidade do tema e das questões relacionadas com a Capoeira
 Neutralizar divergências e competições, uma vez que oferece abrigo para todos os segmentos da Arte;
 Oferecer estímulos e compromissos dos legisladores e ações de governo;
 Criar processo continuado de legislar sobre o tema, pois cada uma parte caracterizada deverá abrir outras leis e processos específicos
 Vincular setores de governo a ações para salvaguarda e inclusão da capoeira em suas diversas facetas;
 Criar respaldo à inclusão cidadã dos praticantes e mestres, profissionais e detentores dos seus saberes, que possuem necessidades e direitos distintos;
 Proteger o patrimônio imaterial da capoeira;
 Orientar ações do poder público, atribuindo compromissos e obrigações aos setores do governo de modo independente entre si, assim o Ministério do Esporte poderá apoiar e se envolver com as questões desportivas ao tempo que o Ministério da cultura se encarregará das questões culturais, rituais, ancestrais de interesse direto dos portadores da cultura capoeiristica;
 Segmentar as discussões da capoeira e especializar os temas/atores, em fóruns e congressos específicos e salvaguardando nossos mestres dos saberes capoeiristicos de de desrespeito e exclusão por uma abordagem hermética e/ou excessivamente técnica.
Entre outros aspectos que poderiam ser citados.

Entendo que a capoeira ganhará, assim, uma identidade no legislativo e no executivo, trazendo a tona uma nova visão e nova compreensão, efetiva e abrangente, de seus problemas, segmentos, atores, questões, etc.

A visão da Lei Orgânica é sistêmica e não deverá excluir nenhum dos interessados, apenas organizando seus temas em segmentos e permitindo uma priorização democrática nas políticas que forem sendo produzidas e, conseqüentemente, nas ações daí geradas.

Em termos de encaminhamento, a Lei Orgânica irá ser produzida numa primeira versão em Brasília-DF, contando com os mestres e professores daqui, alguns colaboradores que compreendam sua proposta e possam contribuir com as questões técnicas relacionadas com formatação e linguagens que a estruturem, passando esta primeira versão a circular por todos os cantos e todos os capoeiristas interessados em contribuir com ela, absorvendo todas as idéias e sugestões que a melhorem e aumente sua abrangência e alcance para que a maior diversidade de percepções possíveis possam ser abrigadas e acatadas por ela.

Essa fase esperamos que aconteça muito brevemente pois sabemos que existe uma possibilidade de apresentarmos essa minuta ainda este ano para encaminhamento pela Frente Parlamentar da capoeira.

Espero contar com o apoio de todos os nossos camaradas e, aproveito para esclarecer que este projeto de lei é de iniciativa nossa, não tendo nenhum compromisso com interesses outros que não os da nossa comunidade, que tem como premissa ser INCLUSIVA, ou seja, ninguém deverá deixar de ter voz e de ser reconhecido no processo de legislação da capoeira.

Aguardo todas s reflexões e contribuições que possam surgir para o encaminhamento do assunto e esclareço que estamos buscando muito brevemente todos os meios para que as idéias sejam colhidas junto aos camaradas tanto nos Estados e cidades brasileiras, como vindas de quem trabalha e desenvolve nossa Arte no exterior.

Grande abraço a todos e seguimos na luta pela emancipação cidadã da capoeira!

Recomendo a quem queira seguir o andamento dos trabalhos da Frente Parlamentar da Capoeira, seguir os seus movimentos através do site:

http://http://frenteparlamentardacapoeira.blogspot.com/

terça-feira, 8 de junho de 2010

Zebrinha, filho da Fortaleza do Ceará!!






Impressionante até mesmo para quem é muito crédulo, capoeirista convicto, confirmado em anos de estrada e capoeirando nas voltas do mundo, o que a capoeira é capaz de nos trazer...!
Aprovado no concurso da Caixa Econômica Federal, me transferí para Fortaleza em 1979, iniciei aulas de capoeira, na Academia Professor Sá, no Centro da cidade.



O principal sonho que levei no meu embornal de viajante pela geografia do Brasil, era um projeto de criar uma escola de capoeira naquele novo lugar onde passaria a morar por tempo indeterminado.



Muito movimento e muita busca na chegada junto com todas as descobertas da cultura e das pessoas iam me aprisionando numa relação de grande generosidade, em que os camaradas que se aproximavam trazendo suas competências e suas ideologias para engrossar o caldo do terreiro de capoeira que havia implantado, em meados de 1979.



Muitos adolescentes e jovens se firmando naquilo que seria mais tarde o grande berço de bambas da capoeira cearense.



Naquele espaço, mais de cinco centenas de capoeiristas passaram por alí, muitos deles hoje grandes destaques da capoeira no mundo inteiro.



Uma garotada indisciplinada e difícil que exigia grande energia da minha parte, recém instalado no já consagrada no espaço do DCE - Diretório Central dos Estudantes, na Rua Clarindo de Queiroz 133, no centro de Fortaleza.



Mas para compensar tanto trabalho, ali se matricularam alguns ungidos de uma competência e disposição de guerreiros.



Entre essas figuras que se destacaram pela sua dedicação e identificação com a arte e todos os seus desdobramentos, inserindo a capoeira muito além de sua própria pele, tornando-a o seu próprio oxigênio, vital para sua existência e de todas as pessoas com as quais partilha a própria vida. Entre eles estava o Pedro Rodrigues.



Estamos falando de um dos mais importantes capoeiristas cearenses, alguém que irradiou seu trabalho e sua obra na capoeira para além das fronteiras do Ceará, para além do Nordeste, chegando ao Norte, saindo do Brasil e avançando pela Europa, ou seja, mundo afora.



Pessoa de um carisma tão natural quanto o próprio sorriso que ostenta, personagem bem resolvido e de uma tranqüilidade fantástica, Zebrinha, o Mestre Zebrinha de tantos discípulos, é na verdade uma surpreendente revelação dos nativos nordestinos, povo de uma garra incomum, resistente a todos os desafios do clima e das dificuldades materiais que parecem não ter fim, produto de uma injusta distribuição de renda e de atenções de nossos governos.



Porém, longe de qualquer drama ou de se fazer de vítima como produto deste agreste, nasce este verdadeiro mandacaru da resistência, da competência e da força de vontade batizado com o nome de um santo católico que segundo o credo é o guardião das chaves do céu.



Através do retrovisor do tempo, vejo sua chegada pela primeira vez na Terreiro Capoeira, no DCE, usando uma espécie de pijama listado e um olhar desconfiado, e mais tarde junto com seu parceiro Cação, outra criatura que Deus ungiu de muita coragem e também muita molecagem, sendo ele quem levou o amigo Cação (hoje mais conhecido como Gamela) para a capoeira.



Aqueles dois adolescentes só treinavam juntos e também aprontavam muito juntos.



Quase diariamente tinha punição de flexão de braços, por causa de alguma presepada que os dois aprontavam.



Quem visse uma cena dessas jamais seria capaz de imaginar 20 anos depois, o garoto Zebrinha virar o Mestre, mantendo o mesmo sorriso e a mesma espontaneidade e se tornando um verdadeiro touro de força e destreza capoeirística.



Quem conhece capoeira e presta atenção em sua sabedoria sabe que deve aprender com suas músicas e uma delas, muito popular e de domínio público nos ensina:







  • Não bata na criança que a criança cresce. Quem bate não se lembra, quem apanha não se esquece...!


A capoeira é essa fonte eterna de sabedoria e a cada dia fica mais claro para os verdadeiros seguidores dessa arte os seus fundamentos mais sutis, como esse que ilustra uma parte pequena da História de vida do camarada e irmão de luta, o Mestre Zebrinha.



Mas eu seria muito infeliz se deixasse de contar aqui um dos momentos mais gratificantes da minha vida na capoeira, quando já em Brasília, depois de anos morando e ensinando no Ceará, onde pude cultivar tantos discípulos, alunos, amigos e camaradas, ao ver chegar em minha aula no Vizinhança Norte, em Brasilia, Distrito Federal, ninguém menos que Zebrinha, meu aluno de Fortaleza, até então por mim considerado apenas um adolescente empolgado, um pouco mais que iniciante na capoeira.



Mas, engano meu! Zebrinha chegou em Brasília movido por sua vontade de aprender mais, de se aprofundar, de se formar em Capoeira... Ele tinha sede de saber mais e entendeu que eu seria a pessoa com quem ele poderia contar pra isso...!



Surpresas da vida. Surpresas da capoeira. Confesso que não acreditava que isso viesse há acontecer um dia e tive que engolir minha descrença com farinha seca!



Ali estava o meu aluno até então, para mim, apenas aluno. Hoje entendo que essa palavra guarda uma visão infeliz de muitos mestres e que também foi minha visão, equivocada e injusta por muito tempo.



Aluno é uma palavra que vem do grego e que significa sem-luz (a, representa uma oposição com luno, que vem de luz...).



O correto era dizer discípulo, pois isso faz muito mais sentido para mim hoje e me faz rever o que em verdade vi naquele momento, pois só um discípulo muito dedicado e fiel é capaz de se deslocar rumo ao desconhecido e inóspito mundo da capital federal, deixando para trás a familia, o seu lugar seguro entre os seus espaços e referências, enfrentando os próprios limites, medos, limitações, falta de dinheiro, etc.



Só hoje, Zebrinha, posso compreender e digerir o significado do seu gesto!



Na verdade ambos estávamos aprendendo, tanto o discípulo que aprende quando o mestre que dá lição. Essa outra filosofia da capoeira que a cada dia significa muito mais para mim e para todos os capoeiristas de alma!



Aprendiz eterno dessa arte, graças aos desígnios de todos os deuses, seguimos ainda hoje lado a lado, companheiros e amigos, camaradas e irmãos de arte.



É sempre gratificante saber que o tempo não destruiu, muito pelo contrário, forjou mais sólidos em cada um de nós os traços e as marcas do tempo, nos calos da alma e nos olhos de eterna observância e aprendizado, dos caminhos do berimbau, Zebrinha!



Confesso que ao receber uma ligação e o convite para o lançamento do Grupo Legião, fui tomado de alegria, não pela minha participação nisso, embora enaltecido naturalmente, mas sim pela alforria que isso significava para você e seus discípulos!



O garoto que conheci e que um dia dei a mão para ensinar os primeiros passos na capoeiragem era agora um mestre indiscutível e consagrado pelos próprios méritos...!



Maior surpresa ainda me aguardava no momento em que, numa quadra na beira-mar, se alinharam às centenas os membros do novo grupo, uma legião de mandacarus, guerreiros honrados e bem-aventurados que seguiam os passos de um grande mestre, a quem um dia tive a honra de ensinar alguns fundamentos...



Mais do que um motivo de orgulho, o que pude perceber foi que o Ceará ganhava ali um novo líder inconteste da capoeira, independente e gentil, competente e sincero, jogo duro e coração mole...!



Naquele momento também pude entender que estava criada uma nova safra de capoeiras, garotos e homens de olhar sereno para o amanhã do seu grupo, do seu Estado e de sua arte.



Mas não pude deixar de ver a ternura da sua companheira Tereza, a quem o tempo de anos de trabalho e de solidária presença em sua vida, não incomodou em nada e que se tornara uma carismática organizadora dos meios e dos fins do trabalho do Grupo Legião, ostentando uma paciência e uma dedicação competente e delicada gerindo tudo em volta.



Nisso pude também compreender uma das razões do sucesso deste guerreiro.



Mais tarde na casa deles, pude ver mais de perto a profundidade dessa parceria.



Pude notar nas palavras e na atenção a uma centena de pessoas, a clareza das decisões e na objetividade das orientações, mais que uma esposa, o Mestre Zebrinha tem ao seu lado uma guerreira, uma obstinada mulher, cujo amor pelo companheiro era mais uma bênção que advinha dos céus sobre a cabeça, o coração, o corpo e alma deste líder-mestre, ou mestre-líder...



Ela é com certeza um dos mananciais que nutrem aquela montanha de músculos e de disposição que pulsa na energia do Mestre Zebrinha.



Mas o caminho de um aprendiz da Arte substantiva da Capoeira não pára nunca de crescer.
As distancias que alcança a influencia e a presença de pessoas como o Mestre Zebrinha vão cada vez mais além.



De Fortaleza para o Ceará. Do Estado para o Nordeste. Do Nordeste para o Brasil todo.
E inevitavelmente chegou para além-mar as marcas do trabalho e da capoeira do Mestre Zebrinha.



Pude presenciar um dos seus discípulos há cerca de dois anos passados (2007), quando conversávamos calmamente numa barraca de praia em Fortaleza, provocado por mim, que o perguntei se ele afinal estava no grupo de um outro mestre do Ceará e ele me afirmou com uma naturalidade e uma convicção que me impressionaram que a relação dele com o outro grupo era apenas de natureza profissional e que o seu verdadeiro Mestre, primeiro e único é e sempre será o Mestre Zebrinha.



Afinal, em tão poucas páginas e em poucas palavras não é possível, pelo menos não acredito, falar do Mestre Zebrinha ao ponto de fazer justiça ao seu trabalho e a sua pessoa.



Digo isso para me desculpar de antemão pelas pouquíssimas coisas que me ative a escrever sobre ele e seu trabalho.



Não posso me permitir mais ocupar a atenção de quem abra um livro, à cata de maiores conhecimentos sobre essa pessoa tão simples e nobre, muito além do que aqui registro, mas falta algo que não me perdoaria deixar de fora...



A sua ida às origens, buscando a água de beber de nossos ancestrais...



Assim descreveria a narrativa e a empolgação de Zebrinha ao pisar o solo sagrado de Luanda, Angola, a Aruanda que tanto cantamos na capoeira!



Pessoalmente vivi essa experiência ao chegar pela primeira vez ali, de onde veio tanto para nós... Tanto de nós... Tantos de nós... A gênese de nossa cultura e de nossa biologia.



Tocar o continente negro é uma das mais incríveis experiências na vida de um capoeira, alguém que guia sua existência sempre com base em nossas raízes.



Zebrinha não chegou à África como um turista para fazer um safári.
Ele chegou ali como conseqüência de sua caminhada no terreno do aprendizado no caminho do berimbau, algo tão importante quanto o dia em que foi batizado.
Após tantos anos, tantas lutas, derrotas e vitórias, Zebrinha fez o que seria mérito de poucos de nós, ao colocar os seus pés na África!
A emoção é indescritível! É como um sonho. É sentir-se no berço de nossa civilização e ver fluir em nós todas as heranças que guardamos quase sem perceber dentro de nosso arsenal de informações, de nossa cultura, de nosso sangue e de nossa alma!
A capoeira e a África são uma coisa só! Por mais que a tenhamos enriquecido ou embranquecido, ela é a nossa genética tribal que se traduz em nossos modelos mentais e sociais que de lá vieram!
Ver e tocar os nossos irmãos africanos é maravilhoso! É uma bênção tão linda quanto um hino que toca o coração de um capoeira.
E Zebrinha chegou até lá!
Ele tem todo o motivo para se sentir muito orgulhoso e feliz!
Esse deve ter sido para ele – como foi para mim – um prêmio como nunca esperou dia algum!
O tipo de premio que a gente não concorre. Ganha ou não ganha. E a maioria não ganha.
Para terminar minhas parcas e desnecessárias palavras sobre o Mestre Zebrinha sob o ponto de vista muito elementar dos ínfimos momentos que convivemos, sua vida e sua obra, objeto muitíssimo simplificado aqui neste livro, invoco a Che Guevara, quando dizia:
Existem homens que lutam um dia e são bons.
Existem homens que lutam um ano e são melhores.
Existem homens que lutam dez anos e são excepcionais.
Mas existem homens que lutam a vida toda e esses são imprescindíveis!
E eu me arriscaria a dizer, plagiando Che Guevara: existem homens que lutam a vida inteira e um dia acabarão sendo reconhecidos e justiçados e um deles se chama Pedro Rodrigues de Lima Filho, o Mestre Zebrinha, capoeira cearense. Figura de raiz. Do dendê. De axé. Do bem!

Yêh, viva Zebrinha, camará!

Brasília – DF, FEV2009

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ego na Capoeira - ego, esse miserável!!


Neste espaço irei procurar expressar um pouco mais do que venho a algum tempo observando sobre o Ego na capoeira, que, aliás, será tema para um livro que pretendo trabalhar futuramente.

Infelizmente tenho que admitir que na capoeira o ego se tornou algo patológico com configurações de epidemia.

Mas por que? Será que a prática da capoeira passou a produzir um estado egóico nos seus seguidores? Ou seria parte do processo de auto-superação atual da prática capoeirista, a qual produziria como efeito colateral uma espécie auto-estima exacerbada e patológica no individuo?

Ou será ainda uma conseqüência natural do fato que os capoeiristas têm que fazer frente ao injusto mundo dos dominadores?

Veja que nessa última hipótese, a “culpa” seria da questão política enfrentada como parte do processo libertário desenvolvido pelos capoeiristas, pelo menos dos capoeiristas que original e historicamente eram pessoas das camadas mais baixas da população, massacrados por anos e anos de dominação inicialmente dos brancos, mais tarde a burguesia, como costumam se referir os marxistas e os ativistas mais panfletários.

Hoje isso se converteu e foi incorporado pelo discurso da classe média praticante de capoeira, a qual dispõe sempre de acesso à toda sorte de mídia e, com isso, temos tais explicações sempre convincentes, usadas como arrazoados para posturas questionáveis, como o individualismo, o narcisismo e o próprio egoísmo, para acobertar e proteger a tantos de nós mesmos de qualquer forma de cobrança, de crítica ou de responsabilidade por atos tão degradantes que encontramos na capoeira.

Para não ficar parecendo um estudo acadêmico de teorias baseadas em hipóteses dificilmente verificáveis no nosso meio, alguém poderia perguntar onde e como se manifesta esse tal de EGO...?

É impressionantemente presente esse fenômeno. Podem crer. O culto de si mesmo seja qual for a forma que isso se manifesta, é manifestação do ego...

• Muitas questões que existem dentro da capoeira, como incompatibilidades entre pessoas ou grupos, via de regra é produto de algum ego declarado o sutilmente ocultado através dos discursos politizados que descrevi acima.
• A formação negativa ou deformada de muitos capoeiristas que se comportam de modo deselegante ou mal-educado nas rodas, seja cantando (via de regra desafinados ou gritando igual a pavão solteiro!), muitas vezes quando existem outros mais graduados ou mestres na roda; as vezes exigindo privilégios nos eventos, como participar da roda dos graduados ou de mestres. Querendo ser dispensados das taxas e pagamentos pelos cursos ou camisetas. É ego.
• O desrespeito a novatos, deixando-os muitas vezes horas nas filas das rodas sem chance de jogar, insensíveis a isso. É ego.
• Tirar um mestre mais antigo que está na roda jogando, impedindo-o de ter sua liberdade de escolher quando sair da roda. É ego.
• Tentar subjugar ou agredir outro capoeirista, ou um companheiro, do mesmo grupo ou de outro, muitas vezes violentamente, apenas por uma atitude inconsciente ou pela falta de técnica em do novato em um movimento, tenha ou não atingido-o, desde que pareça que o mesmo ameace o graduado. É ego.
• Impedir que uma pessoa seja reconhecida em seu talento para ocultar um possível concorrente ou alguém que possa lhe fazer sombra, agora ou futuramente. É ego.
• Dar uma aula exibindo seus próprios atributos e performances, sem respeitar os limites dos iniciantes ou pessoas em situações de inferioridade por qualquer razão. É ego.
• Ocupar uma roda que tenha muitas pessoas e querer jogar n vezes enquanto muitos não tiveram chance de jogar nenhuma. É ego.
• Se gabar de agressões que cometeu, se auto-elogiar, se gabar de talentos que tenha, ou que ache que tenha. É ego.
• Se colocar sempre em primeiro lugar nas coisas, imaginando-se dotado de privilégios e se achar um ser superior em relação a outras pessoas, independentemente da graduação. É ego.
• Inflamar-se para contar vantagens pessoais e se colocar como um super-dotado em qualquer terreno. É ego.
• Negar a oportunidade a outras pessoas, impondo sua autoridade ou fazendo exigências descabidas. É ego.
• Criticar gratuitamente pessoas tentando fazer com que eles percam o seu prestigio ou o seu brilho perante outras, gratuitamente, ou até por razões justificáveis. É ego.
• Se olhar no espelho e se sentir uma pessoa maior ou melhor que os outros. É ego, além de ser uma estupidez mórbida...
• Tentar aparecer em qualquer momento e em particular nos momentos que existem pessoas ou situações como filmagens fotografias, autoridades, mestres mais antigos, etc.. É ego.

Logicamente que isso poderia ir muito mais longe...! Mas só estou tentando ilustrar as situações em que os egos se manifestam na capoeira.

E o que vemos sobre isso é muito mais na direção do discurso do tipo: temos que nos impor... Capoeira é valente... Ninguém pode segurar um capoeira... Eu sou mais eu... Entre inúmeras outras bobagens, pelo menos para os dias de hoje.

Talvez tudo isso fosse válido como argumento e motivação dos capoeiristas do passado que tinham, eles sim, razões para chutar o balde das regras sociais... Nós, hoje, nas condições que temos a maioria dos grupos, composto na maioria por participantes de classe média...? A esses não caberia esse discurso.

Mas, tem uma coisa mais triste ainda em relação ao dito cujo.

O ego é uma forma de sofrimento. É o sofrimento da insegurança. É a não resolução de conflitos interiores. É o problema que não entendemos como problema. É viver do passado, do que já fomos ou fizemos. É desconhecer a realidade das coisas. É se sentir com necessidade de afirmação o tempo todo, sendo, portanto um estado de espírito onde temos sempre que provar alguma coisa a alguém... É sem dúvida uma dimensão sem brilho da alma humana.

Tudo bem, nada ou ninguém pode mesmo deter esse processo. A não ser que os próprios capoeiristas percebam no que isso está convertendo a prática da capoeira. Se vermos os aspectos negativos dessas posturas, talvez a gente comece a enfrentar ou pelo menos a deixar clara nossa indignação frente a isso.

Os ditos valentes, por exemplo, na maioria das vezes são superegos ensimesmados e exacerbados querendo provar sua superioridade frente a pessoas menos graduadas, fora de forma, inocentes, pacíficas, fisicamente menores, etc... O ego nesse caso é uma receita muito usada para esvaziar a entrada de novatos nos grupos. Depois ainda não sabemos por que a capoeira diminuiu tanto o efetivo de seus participantes.

Em outras palavras, estou afirmando que a capoeira, utilizada pela classe média em particular está produzindo muitos efeitos colaterais negativos em sua prática. Esse efeito em grande parte se caracteriza pela exacerbação do ego no individuo.

É claro que muitos da camada mais baixa também sucumbem a esse mal. Ninguém escapa do vírus do egus patologicus urbanus, para dar um nome pomposo a esse fenômeno. Não dá para esquecer que a explosão da comunicação promovida pela globalização faz chegar a todos os rincões sociais as influências produzidas nos grandes centros. Como diz Caetano Veloso: Bomba de Hidrogênio, luxo para todos! Representando a propagação das piores coisas entre todas as camadas da população.

Assim temos no caso da capoeira, o direito inalienável de qualquer um se tornar um insensível bombado, ou um horrível valente de galera que todo mundo sabe exatamente o que é... Isso é o subproduto do desenvolvimento de uma egoficação em massa, que é o que permite e estimula a propagação da epidemia do ego na capoeira.

A capoeira provavelmente até a metade do século XX se assentava nas camadas mais baixas economicamente da população.

As periferias, subúrbios, áreas de favelas urbanas, entre outros espaços da população menos favorecida da sociedade é que representavam os capoeiristas. Isso logicamente mudou, a classe média foi assumindo a capoeira, inicialmente de modo discreto, mas desde o final da década de cinqüenta houve uma incorporação de uma massa muito grande dessa classe nos movimentos da capoeira.

Facilmente podemos refletir que capoeiristas da classe economicamente mais baixa da sociedade raramente teriam como chegar até o exterior como professores de capoeira. Esse caminho teve que ser aberto por representantes da classe média, obviamente.

Portanto, o discurso que era originalmente legitimo dentro da capoeira, da opressão e da luta de classes, foi sendo apropriado em cadeia, no processo de aculturação da capoeira pela classe média que o reempacotou e devolveu, criando o que o meu amigo Jota Bamberg, o Mestre Angoleiro chama de prateleira da capoeira, difundida através da mídia às massas dos capoeiristas de todos os níveis sociais.

A entrada da classe não-escrava na prática da capoeira é muito bem explorada no trabalho de Letícia Vidor de Sousa Reis, estudo publicado no livro O mundo de pernas para o ar, Ed. Publisher Brasil, ano de 2000, onde a autora demonstra inclusive que a própria legislação que nos parece sempre ser uma forma do governo de combater a capoeira pura e simples, na verdade guardava uma certa dose de controle das ações da polícia, que tinha autoridade para prender e punir os capoeiristas, e depois foi sendo (a polícia) obrigada a produzir um processo de julgamento antes da punição, esvaziando assim uma autoridade que a referida policia tinha, a revelia de qualquer processo penal...

Isso demonstra que a até mesmo os mecanismos sociais de combate ou de controle da capoeira e seus efeitos sociais negativos – conflitos de maltas, roubos e espancamentos de pessoas, ameaças a autoridades, etc., tinham no fundo uma outra faceta, que era justamente a de abrigar e proteger os eventuais representantes não-escravos capoeiristas que fossem presos praticando a proibida arte da capoeira.

Mais tarde, muitos capoeiristas dos guetos de cidades como o Rio de Janeiro ou Salvador (não necessariamente nessa ordem) polemizaram posições politicamente, muitos se incorporando ao próprio banido Partido Comunista (ver o caso do Mestre Onça Tigre, que ensinou Teoria Marxista no PC), esse debate foi estimulado por diversos outros capoeiristas de expressão por volta do final da primeira metade do século XX, conforme muitos capoeiristas como Mestre Decânio, o próprio finado Mestre Onça-Tigre, Mestre Traíra e o próprio Mestre Bimba, que teve muitos alunos da classe média, universitários e outros da alta sociedade.

Mestre Onça-Tigre dizia sempre com uma dose de lirismo por sua veia comunista incorrigível que a capoeira teria sido o primeiro partido político no Brasil...

Sem nossas justificativas politizadas, talvez teríamos que ter uma certa dose de expiação através de nossa consciência ou de valores morais mais profundos, mais humanos, mais crítico-reflexivos, mais corajosos e mais coerentes com nossos limites, até mesmo para estabelecer novos desafios no andar da carruagem do aprendizado da capoeira, para a própria capoeira, como novo marco de seu crescimento teórico, moral ou filosófico, ou simplesmente para que a Capoeira possa se soerguer rumo aos níveis mais elevados do conhecimento humano, alçando talvez o status de um conhecimento profundo e respeitável em todas as camadas das comunidades e até das elites pensantes do planeta.

Mas a capoeira não desenvolveu dentre seus praticantes como lema natural essa ponderação, esse cuidado com os limites do ego. Isso parece antes ser parte das reflexões desnecessárias de pensadores orgânicos da capoeira... Felizmente muitos estão se alinhando a essa proposta, visando ampliar as produções filosóficas na capoeira... Proposta em primeiro plano deste blogg aqui...

Quero deixar claro que todas essas reflexões estão fechadas, sempre, através de uma interrogação.

Resolvidos em nosso problema egóico, poderemos crescer em nossa aceitabilidade e no respeito social para conosco, os capoeiristas, seres extremamente competentes em sua emancipação crítico-reflexiva, cujo limite é produto talvez e exclusivamente da falta de novos horizontes para percorrer ou novas perspectivas para a ascensão de nosso espírito de guerreiros para os umbrais de uma maior competência espiritual...

Mas admito por uma conveniência estratégica e pela produção prévia de um álibi para as minhas reflexões inconclusas que o tema é muito delicado.

É como cortar na própria carne com o requinte de um estripador, a gente ter que remoer coisas como os efeitos negativos da capoeira, ainda que estejam sendo tratados com o firme propósito de elevar os níveis de nossas percepções e nossa relação com a arte da capoeira e o mundo em que nos cerca, tanto o que nos coloca dentro dela, como o mundo em nossa volta, ou como também a volta do mundo, como dissemos quando nos referimos ao andar da capoeira em seu mundo simbólico e físico, no crescimento de sua técnica, de seus conhecimentos, de seus praticantes e defensores, e na sua ocupação de espaços, que já nos surpreende e muito... Mas queremos mais... como disse Toni Vargas em seu trabalho junto com Nestor Capoeira: queremos que a capoeira vá para fora do planeta...!

Também vale recorrer ao Mestre Pastinha, quando ele dizia que o “seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres”, acredito que se referindo ao conjunto das possibilidades que a capoeira abriga, dentro e fora da roda...

Pela complexidade do tema, que já havia iniciado com o meu texto A faca de dois gumes do ego na capoeira, passei muito tempo buscando uma maneira de lidar com isso e não ofender ninguém. Mas infelizmente parece impossível!

Muito difícil é controlar essa onda eterna de egos comandando as coisas!

Mas vamos seguindo...

__________________+++++_______________

(continua...)

sábado, 5 de junho de 2010

Capoeira & Educação: Em busca de um diálogo interdisciplinar















“A capoeira é amorosa, não é perversa.
Capoeira é mandinga de escravo africano no Brasil.
Um costume como qualquer outro.
Um hábito cortês que criamos dentro de nós.
Uma coisa vagabunda.”

Mestre Pastinha



Este texto foi desenvolvido através da adaptação de insumos extraídos do livro Escola, o Terceiro Grau da Capoeira, ainda não publicado, de minha autoria, cuja intenção é subsidiar o debate entre os universos da escola formal e da instituição da capoeira, representada nos grupos e nas linhagens tradicionais da capoeira, sendo linhagem um termo que visa atribuir uma orientação das escolas de capoeira, ou seja, as filosofias adotadas enquanto organização, preceitos de trabalho, filosofia de aprendizado, tradições, rituais seguidos na realização de rodas e eventos, entre muitos outros aspectos que se convertem uma escola própria de cada uma dessas linhagens e suas variantes.

Muitos insumos também são obtidos da vivência dentro do universo de debate em torno de tão estimulante tema: capoeira na escola, capoeira e a escola, capoeira versus escola, educação e capoeira, capoeira como parte de uma educação integral, enfim... Infinitas abordagens que o tema permite.

Assim, embora tantas outras possibilidades existam para a abordagem desse debate, irei privilegiar alguns approaches que foquem potenciais inerentes à capoeira enquanto instituição que lida com práticas culturais, educacionais, sociais, morais, éticas, desportivas, corporais, etc. Logicamente com um universo tão rico de possibilidades, tivemos que privilegiar alguns desses aspectos para focar nesta nossa interação inicial.
Os desdobramentos são tão amplos quanto o tempo e a importância que se dê ao tema... Sendo presumível que não existe limite para tal debate.

Sabedores que temos um tempo limitado para essa discussão inicial, trouxe dentre os insumos deste texto alguns elementos que permitam ilustrativos subsídios quanto ao potencial de suporte mútuo entre a capoeira e a educação, num sentido tanto quanto no outro.
Também entendemos como oportuno anexar um discurso proferido na Câmara dos Deputados, justamente debatendo a questão da capoeira e a educação como temas recorrentes e da maior importância para o povo brasileiro.

Fundamentos Didáticos na Capoeira

A capoeira, enquanto disciplina didática e pedagogicamente alinhada possui em seus conteúdos, já estando inserida no debate acadêmico de nível de pós-graduação e o acervo disponível decorrente de sua produção até o momento, possui no seu bojo recursos excelentes, bastante ricos em abrangência e forma sendo, portanto, pertinentes ao objetivo a que se destina, qual seja, sua flexão e reflexão sobre as dimensões crítica, construtiva e integral como matéria do ensino de educação física, esporte educacional ou ainda como foco de interesse temático para estudo em outras disciplinas, como a História, Artes (dança, teatro, fotografia, etc.), Sociologia, Antropologia, Política, Fisiologia do Esporte, Psicologia.

Tangencialmente já temos sabido de estudos envolvendo a capoeira em outras disciplinas, como a Matemática, o Português e a Música.

Se considerarmos, ainda, o potencial da Capoeira como produto e como gerador de elementos didáticos e pedagógicos para uma escola em qualquer nível, perceber-se-á que os ajustes naturais e uma adaptação espontânea serão parte da sua dinâmica expansiva e por isso poderemos ir adicionando diversos outros aspectos que deverão fluir desses conteúdos dentro da sua evolução e maturidade.

Particularmente os impactos mútuos que se darão entre a capoeira e a educação física, vez que a prática capoeirística possui suas esferas simbólicas, contendo rituais e valores, explodindo através de uma alquimia urbana, propagada através de uma publicidade subliminar oralizada que responde às angústias, desejos e ansiedades de uma geração inteira de consumidores, crianças, adolescentes e jovens, senão mesmo os adultos e clientelas especiais (excepcionais, deficientes físicos, terceira idade, e outros) – caso seja abordada sob as opções adequadas a cada público.

Por outro lado, a educação física, enquanto disciplina de tantos recursos didáticos e pedagógicos peculiares, particularmente por suas metodologias cientificas sempre planificadas, suas abordagens criteriosas e adequadas do ponto de vista etário e psicológico – estratégias de superação de deficiências específicas, através de exercícios localizados ou estímulos fisioterapêuticos, dinâmicas de grupo, além da fusão que desenvolve, através de práticas interdisciplinares, o que a enriquece sempre muito e a torna uma disciplina dotada de tão espontânea adesão dos alunos.

Existe uma natural reciprocidade entre as duas disciplinas e isso se torna algo profícuo e complementar, acrescentando a ambos os insumos positivos e uma série de expansões de seus recursos inatos.

A escola tanto quanto a capoeira fazem parte dos espaços complementares da vida social - particularmente pela sua contribuição à esfera da formação e ampliação da consciência crítica das comunidades-clientelas, sendo sempre parte no debate/competição social representado pelos grupos, o que também pode ser visto como capaz de atuar na dialética do movimento histórico e político de ambas as disciplinas.
Inevitavelmente estará aí recorrente uma luta de cunho material e econômico, ético e moral, bem como da sempre presente dicotomia social pela convergência dos pares em contraposição à divergência e competição naturalizada para com os outros, num debate que poderá se prolongar por períodos imponderáveis de tempo.

Essa xenofobia é recíproca e faz parte de um cenário comum entre as disciplinas vivas nas próprias universidades, em grande parte questões de natureza política e implicitamente aspectos materiais e do poder econômico por trás do debate: farinha pouca o meu pirão primeiro, como reza a sabedoria popular.

Nesse sentido vemos que a Escola terá que entrar e debater esses conflitos, mesmo se considerarmos que ela, hoje, na sua atuação de educação geral ainda não resolveu - quiçá o possa algum dia fazê-lo, seus próprios e internos problemas, sendo visível que está ainda longe de superar muitos de tais desafios frente a percalços de natureza sócio-econômico-político-cultural, inerentes a sua situação geral, que lida com as suas diversas crises e dimensões sociais.

Já estão presentes na escola outros tantos conflitos sociais e o que temos visto é recrudescer cada vez em maior número, exemplos de fatos em que explodem essas questões, diversas vezes de forma drástica e dramática: sob o impulso primevo da violência mais absurda, que tem registrado mortes e outras formas mórbidas de agressões fatais. Vale citar e destacar o já conhecido e reconhecido fenômeno do bulling é outra dessas patologias sociais em franco desenrolar nos espaços das escolas.

Do lado da capoeira não é diferente.

Diversos processos competitivos sempre fizeram parte do dia-dia da capoeira, entre eles questões de competição de natureza sócio-econômicas e de poder, como é o caso das federações, ligas e confederações, que disputam o direito de representar a capoeira desportiva, junto às instâncias oficiais, como o Comitê Olímpico Brasileiro – COB, Ministério do Esporte, Ministério da Cultura, etc.

Os grupos de capoeira, estrutura de organização celular mais comum da capoeira institucionalmente representada, trás outras tantas questões e conflitos que se arrastam a décadas no Brasil, através do fenômeno que se caracteriza como uma síndrome das maltas que se manifesta através de diversas facetas, que vão desde a luta por espaços até aos conflitos violentos, dentro e fora das rodas de capoeira, lugar-comum da manifestação desses problemas.

Pode-se antever a capoeira na escola e sua inserção sociocultural no seio das turmas e classes, tornando-se assim parte do acervo psíco-sócio-cultural, passando a compor e a interferir na educação e no seu debate, parte de todo o cenário acima descrito.

Alguns aspectos podem ser discutidos das relações da capoeira com a educação e de seus possíveis papéis e funções, onde sua práxis pode tranquilamente ser visualizada interagindo como parte bastante efetiva de instrumento didático-pedagógico na Escola.

Alguns deles podemos analisar como se segue:

Como conteúdo na Educação física – a capoeira dispõe de recursos de aperfeiçoamento e de superação de dificuldades motoras, inatos em sua prática que, latu-sensu, pois isso se torna uma conseqüência implícita em sua prática continuada, atribuindo aos praticantes uma melhoria no domínio corporal, seja do ponto de vista do alongamento, flexibilidade, explosão, equilíbrio, agilidade, força, ritmo, resistência, além de um indiscutível ganho nas funções aeróbicas, anaeróbicas, muscular, cardio-vascular e, assim, na saúde de modo geral (Xaréu, 1990).

Componente do processo de Integração social – pelo fato de ser uma prática eminentemente coletiva, a capoeira torna-se num importante aliado no sentido da promoção da integração das pessoas e de sua solidariedade mútua e crescente. Uma energia social de grandes proporções é gerada na prática da capoeira e essa energia não deve ter sua importância, sentido e direcionamento desprezado. Essa energia, se bem canalizada e dirigida, torna-se um elemento catártico e altamente positivo no grupo. Um risco que daí decorre, é a reprodução dos grupos de poder (popularmente denominado de panelas) no seio das escolas, tornando-se, se levado ao extremo, num empecilho ou até mesmo numa deformação, haja vista a facilidade com que eclode a competitividade pela afirmação dos membros-adeptos dentro do grupo social e o conseqüente lado negativo daí decorrente.

Elementos lúdicos - uma importante corrente interpretativa da História da capoeira, a insere herdeira do bojo cultural do elemento afro, em sua perspectiva mais absolutamente original, extensiva em praticamente todos os modelos de vida social dos negros, considerados em toda a extensão de sua diáspora é a ludicidade, a brincadeira, folguedos ritualizados sob diversas formas e categorias, presentes no trabalho – as colheitas cantadas e dramatizadas dos negros americanos; as pescas cantadas e ritualizadas pelo Mestre-pescador – transformado inclusive no folclore da puxada-de-rede; enfim, teria sido um passatempo despreocupado e legítimo os primeiros passos da capoeira?
Muitas outras formas desse passatempo são encontradas em diversos folguedos e folclores de uma enorme diversidade de regiões no Brasil e mundo afora, e na capoeira isso também está presente – mesmo que tenhamos que considerar uma gama razoável de influências brancas hoje encontradas na capoeira que impactam esse seu potencial, o que, no entanto, não elimina suas características e potenciais lúdicos originais, particularmente se considerada a Escola como seu ponto de manifestação e prática.

Jogos e competições educativas – no percurso da prática e da História da capoeira, os seus elementos desportivizados seriam sem dúvida os mais privilegiados e utilizados como campeadores institucionais. Isso se dá principalmente pela vontade que muitos capoeiristas e mestres têm de ver a capoeira transformada em modalidade desportiva, seja pelo prestígio que o esporte goza dentro do interesse da sociedade desde os primórdios dos jogos gregos moderna, seja por ser esse aspecto algo capaz de reforçar a aceitação social da capoeira, seja, enfim, pela trilha organizadora que tal enfoque permite, a adequação da capoeira como modalidade desportivo-competitiva é indiscutível e isso se traduzirá sempre como um manancial didático-pedagógico explorável sob condições as mais diversas possíveis e imagináveis, dependendo exclusivamente da manutenção de um espírito educativo que tais competições devam manter .

Potencial interdisciplinar – a capoeira vem sendo estudada sob uma infinidade de disciplinas, entre as quais, só para citarmos algumas, encontramos: História, Sociologia, Antropologia, Arte, Música, Ecologia, entre outras e, embora não caiba aqui recortarmos as produções que essas áreas têm viabilizado na compreensão da capoeira, podemos perceber diversos usos-potenciais que as abordagens interdisciplinares revelam na capoeira, seja viabilizando a manutenção de uma grade de horários rica em atividades, seja permitindo uma incursão dos alunos por outras disciplinas e experiências.

Numa visão mais prática poderíamos sugerir experiências com pinturas, colagens e esculturas; pesquisas envolvendo a História, personagens e fatos que tiveram importância na vida social do País, que foram praticantes, admiradores ou estudiosas da capoeira (temos diversos registros de personalidades nacional e estrangeiras nessa condição); experiências com músicas experimentais – além da música típica utilizada na capoeira, experimentando outros tipos de instrumentos e efeitos sonoros obtidos pelos alunos; pesquisas, enfim, utilizando aspectos sociais, étnicos e antropológicos da capoeira e dos capoeiristas, que mantenham o interesse dos alunos dentro da disciplina e que fomente, da mesma forma, a sua aproximação com outras disciplinas dentro da Escola e da vida dos alunos.


(continua na próxima semana...)




segunda-feira, 24 de maio de 2010

Breve ensaio sobre a violência atual na Capoeira


Para a maioria dos mestres de capoeira, mormente os que estão com mais idade cronológica, a capoeira está passando momentos muito tensos em sua existência.
Apesar de muitos acharem que estamos vivendo um momento de bonança, muitos de nós também sabem que já estivemos em melhor situação...

Se compararmos o número de capoeiristas dos dias atuais (maio/2010) com a segunda metade dos anos 90 (1995 a 2000), sabemos que houve uma redução incrível no número de praticantes e de adeptos matriculados nos grupos, nas escolas, nas academias de capoeira.

Naturalmente o número de graduados aumentou, em particular se considerarmos isso proporcionalmente... (ver artigo neste blog denominado de “A pirâmide Social da Capoeira”).
Teríamos uma explicação óbvia, se aceitássemos o fato de que vivemos dias tensos nesse período, inclusive com diversas mortes violentas dentro de rodas de capoeira em diversas cidades e regiões do Brasil.

Para ilustrar essa estatística, encontramos no google.com uma amostra de páginas contendo a expressão “violência na capoeira” de mais de 22 mil ocorrências (busca realizada em 19MAI2010).

Ora, embora o mercado da violência seja indiscutivelmente grande, já que sabemos do sucesso dos vale-tudo desde a época de Nero, sabemos também que uma coisa é assistir alguém se matando em um ringue e outra coisa é ir para uma escola onde isso seja o tema do aprendizado, como passou a acontecer na ultima década do século vinte.

Todos sabemos e acompanhamos o sucesso que fazem os filmes que lidam com combates mortais, como o “mortal kombat”; “Cão de Briga”; “Dragão Branco”, entre N outros...
Por essa razão acredito que tenha havido um enfraquecimento da procura por aulas de capoeira no período seguinte a essa explosão.

É fácil perceber que a quantidade de praticantes tenham contribuído para esse descontrole e pelo aparecimento de conflitos muito sérios entre os grupos de praticantes.

Obviamente existe por tradição uma espécie de “síndrome de malta” (conceito batizado por mim, à revelia da comprovação científica, já que essa exige tempo demais para atender às suas mazelas metodológicas...), onde os capoeiristas desenvolvem – por orientação do seu mestre ou não – uma xenofobia velada ou declarada aos praticantes afiliados a outros grupos, normalmente onde se atribui adjetivos pejorativos ou irônicos a esses sarobeiros designação que vem sendo muito utilizado dentro dessa visão e contexto.

Diante desse crescimento, muitos capoeiristas se projetaram, se desenvolveram ou se afirmaram no mercado dos valentes, dos competentes ou dos resistentes, mercado que passou a ser bem atraente mesmo para uma chance econômica bem razoável de crescimento e de fixação de espaços de trabalho.

Logicamente desencadeou-se uma concorrência muito grande entre os grupos, que passaram a disputar os alunos que ofereciam maiores chances de se desenvolverem, ou por mercados mais lucrativos, como em áreas de população de melhor renda, assim como em países da Europa ou dos Estados Unidos.

Mas existe uma Lei do capitalismo que diz que toda vez que uma procura floresce, a oferta também cresce, na busca natural desse mercado...
Foi aí que a oferta passou a ser maior que a procura de novo, justamente quando a decadência moral da competitividade desvairada e sem controle se tornou uma forma de violência tanto simbólica – com as críticas aos pacíficos como sarobeiros, dançarinos, etc., ou com os conflitos entres os que se colocaram do lado da capoeira contemporânea, que até aqui não tem uma definição ou conceito claro para mim, sendo apenas uma maneira de justificar a indiferença a rituais ou tradições mais antigas, ligadas à capoeira Angola ou à Regional, essa última dentro dos preceitos do seu criador, Mestre Bimba.

O crescimento dos grupos que passaram a desprezar as tradições e os rituais das rodas que seguiam os mestres mais antigos da capoeira, caíram nas graças da mídia, por razões óbvias, já que a identificação com os esportes radicais sempre foi muito mais interessante para a imprensa sensacionalista de nosso tempo do que a ludicidade ou a ritualidade, tradições culturais, projetos de interesse social (grande numero de projetos de capoeira seguem para esse mercado), aspectos filósóficos sem sentido para a imprensa que busca a morbidez de nossos tempos, que se encontram nas praticas tradicionais.

Ora, sem o controle das rodas através de rituais e da presença dos mestres detentores da cultura tradicional, a roda de capoeira se tornou uma espécie de circo acrobático e estéril, onde o mais importante nos cinco a dez segundos que cada um tem para se apresentar, é fazer o maior numero de movimentos sensacionais possíveis e passou-se a desprezar completamente o diálogo de perguntas e respostas típico da capoeira tradicional.

Os capoeiristas passaram a fixar seu aprendizado e desenvolvimento, buscando e assimilando movimentos acrobáticos o mais sensacional possível, passando a ser esse o maior mérito a ser demonstrado pelos atletas-acrobatas no seu desempenho dentro das rodas.

O ritmo dos toques de berimbau desfigurou completamente a musicalidade tradicional – conforme são executadas seguindo a regional ou a angola – tornando-se uma espécie de roque frenético cujo tempo para a performance de cada jogo dura no máximo dez segundos, portanto, busca-se usar ao máximo esse tempo fazendo o maior numero de peripécias possíveis e sendo aclamados pela platéia, participantes da roda ou da assistência em volta.

A aceleração dos instrumentos passou a ser naturalizada de tal maneira que hoje em dia é muito pouco aceito o andamento dos toques seguindo o ritual da tradição.

Com isso, infelizmente, os capoeiristas mais velhos ou ligados à tradição independentemente de sua idade, passaram a não ter lugar nessas rodas pós-modernas.

Quando alguém inicia uma roda com um toque próximo do ritmo da tradição, é rapidamente substituído por outro atualizado com o pós-modernismo do são bento grande sideral...

Aí a roda acontece! Pelo menos para os que só conhecem isso. Uma vez que muitos ditos mestres de hoje desconhecem os rituais tradicionais ou simplesmente os desprezam, por considera-los antigos.

Claro que após um tempo acostumados com esse frenesi, os capoeiristas dessa geração se entediam rapidamente com os ritmos tradicionais, ou com os rituais, onde os parceiros jogam até esgotarem sua capoeiragem ou seu interesse naquele mesmo jogo.
E o que temos agora, via de regra, é uma capoeira que não corresponde mais a nada do que era conhecido há dez ou vinte anos passados.

Temos sim, uma retradicionalização baseada nas mesmas fontes dos esportes radicais e do hip hop estadunidense. Influências implícitas nos movimentos acrobáticos, nos estilos de cantoria, no andamento do instrumental, na força agressiva do côro, criando uma nova era na capoeira, sem dúvida alguma a pós-modernidade capoeiristica do novo milênio. Pelo menos temos assim uma maneira de encarar esse fenômeno.

Queixas contra isso? Não. Ninguém tem poder sobre isso. Nada pode deter o avanço dos tempos e dos movimentos humanos rumo à sua plenitude...

Alguns aspectos, no entanto, precisam ser considerados, sendo eles interessantes ou não para a maioria dos praticantes emergentes dessa nova modalidade:

a) a aceleração do ritmo afastou o capoeirista da tradição dialogal da capoeira regional ou angola, fazendo com que os jogos sejam muito mais uma evolução dos solos aos pares que são executados;

b) os capoeiristas estão trocando o relacionamento no nível da roda para uma performance individual e longe das tradições da capoeira (a afirmação do capoeirista sempre foi um fenômeno interativo e coletivo, e estamos ingressando há muito no terreno do individualismo, conforme prega também a cultura dos norte-americanos);

c) como já previu o Mestre Decânio há mais de dez anos, o capoeirista está jogando sem se relacionar com a vibração do berimbau, tornando-se um praticante de uma outra forma de arte, indiferente ao berimbau, pois o ritmo do jogo tornou impossível esse diálogo. Teremos que desenvolver outro conceito, já que o berimbau sempre foi a alma do jogo;

d) o movimento muito acelerado de jogo está produzindo um enorme contingente de atletas lastimados em diversas partes do corpo, mormente os joelhos, coluna, calcanhares, ombros, principalmente; alguns deles tiveram ou terão que abandonar o esporte decorrente de suas lesões;

e) o afastamento dos mestres mais antigos da roda, traz como conseqüência a perda da tradição oral inerente à pratica da capoeira, arte de origem e identidade afro-brasileira, onde o ancião é e sempre foi um portador da cultura, ausente esses mestres, as tradições se perderão e se tornarão cada vez menos conhecidas, eventualmente sendo substituídas por outras coisas;

f) o ritmo frenético dos instrumentos, acelera muito os batimentos cardíacos e o estresse dos praticantes, propiciando conflitos e confrontos entre os atletas, sendo muito difícil alguém controlar os ânimos quando a aceleração da música se torna exagerada demais.

É possível fazer alguma coisa??
Existe alguma coisa para ser feita??
Existe algum movimento nesse sentido??

Essas são questões que devem ser respondidas por cada um de nós. Particularmente os mais antigos capoiristas, professores, mestres e contra-mestres, que se sintam portadores da cultura tradicional, a capoeira de raiz...

A capoeira que chegou até os anos recentes da nossa História.

A capoeira que emancipou muitos atletas... Muitos capoeiristas. Muitos homens. Muitas mulheres.
Dentro da minha limitação pessoal tenho que confessar uma coisa: esta é a única capoeira que conheço um pouco!!

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Capoeira & Saúde na Melhor Idade: a Capoterapia...




Ginga da Melhor Idade
(texto do Mestre Skisyto
originalmente publicado no livro do
Jornalista Mano Lima & Mestre Gilvan, como prefácio)




Tudo que reluz nos cabelos brancos é ouro...
Finalmente encontro o grupo de capoeira que tem um time inteiro de estrelas, incapaz de fazer mal a qualquer adversário, uma equipe incapaz de perder a calma num jogo...
Educado, sensível, atento a todos os movimentos e todos os momentos do evento, desde a conversa mais longa, até a roda mais animada.
Esse grupo é animado e não perde um evento. Nem uma festa. Nem um passeio. Nem uma boa roda, claro!
É um grupo perfeito! Com uma alegria contagiante. Que arrasta as famílias para os eventos, todos encantados com a energia que irradia dele.
Estou falando uma gota d’água no mar da grandeza que a galera da melhor idade representa.
Pessoas que são porta-vozes de quem depositou sua confiança numa nova esperança e que a cada dia supera um mar de equívocos, mitos e preconceitos que ainda cultuamos e que giram em torno do envelhecimento, mormente no Brasil, onde a maioria da população se encontra numa faixa de idade relativamente mais jovem.
Provam a cada dia que podemos superar os limites de nossas crenças equivocadas de que uma vida feliz pertença somente aos que tem juventude cronológica e força física.
Esse movimento ajuda também a derrubar de vez um outro mito recorrente que entende que a capoeira é destinada aos portadores de força e destreza física e/ou de talentos acrobáticos geneticamente herdados ou desenvolvidos, e que é praticada sempre sob a forma de competição e movimentos viris.
Essas pessoas atenderam ao chamado ao pé do berimbau – expressão usada na capoeira para definir a dupla que se cumprimenta entre si e ao mestre do berimbau para iniciarem um jogo. As quais deram uma volta no mundo (fazer um círculo em volta da roda de capoeira) e entraram na roda ao seu próprio tempo e passaram a receber em troca um brilho novo nos olhos, muita energia e felicidade!
A lição que elas e eles, senhoras e senhores de uma dignidade e uma alegria contagiante, nos dão, não tem limites...
Avós e avôs, tias solteiras ou viúvas, mães de outras mães mais jovens que transmitem também sua empolgação pelos resultados que a capoeira traz cada dia para aqueles que poderiam ser os sem-futuro, caso se submetessem ao preconceito e aos equívocos de tantos anos que vivemos sob a égide do viver é coisa dos jovens.
O que vemos na capoterapia é a demonstração natural de que viver e ser feliz não tem idade. Que o bem estar de fazer capoeira é indiscutível. A alegria de brincar ao som do berimbau é democrática e universal.
A capoeira motiva emocional, física e socialmente e traz benefícios para a saúde em qualquer idade, mas no caso da melhor idade esses benefícios vão além...
Emocionalmente, a capoterapia dá suporte através da alegria, da música, do teatro mágico dos movimentos e das coreografias infinitas que vão acontecendo em volta e dentro da roda, sob a batuta mais que competente do Mestre Gilvan, movimentando em processos lúdicos e embalando a alma guerreira, algumas vezes cansada, vinda de momentos sem esperança, pela prostração quase obrigatória de nossas regras sociais hoje graças a Deus superadas. Vencendo uma gama enorme de barreiras.
A simples idéia de vencer a si mesmo e dar o primeiro passo para uma atividade nova, mandando para escanteio toda sorte de interpretações errôneas sobre os limites da terceira idade e sobre os requisitos e possibilidades da capoeira, já representa uma conquista para a alma de nossas guerreiras e guerreiros que procuram a capoterapia.
Vindos de camadas mais simples da população, só têm a sua própria vontade como motor para andar em direção à capoeira e abraçá-la com sua humildade. Trazem sempre a coragem de quem já não tem razão para aceitar verdades definitivas e restritivas à sua liberdade de escolha.
E o universo capoeirano, sempre generoso, abençoa esses novos capoeiristas, cidadãos conscientes e bem resolvidos com seu passado, seu presente e seu futuro, simplesmente abrem seus braços para a causa e a nova roda de amigos desde o momento em que nela pisam. E aprendem a amar o berimbau e todos os seus significados.
A auto-estima de uma pessoa que se encontra diante de tantos preconceitos e atravessa o portal da nova vida que a capoeira lhe proporciona só se amplia, se enche de orgulho, só faz sorrir a alma tantas vezes sem esperança e cansada de longas trajetórias de labuta, de sofrimento e de dificuldades por uma vida inteira de incansáveis lutas pela sobrevivência sua de seus descendentes.
Fisicamente, os benefícios da capoterapia tampouco têm comparação com nada.
É sabido que em certo momento da vida, tem-se a predisposição para um retorno à infância. Verdadeira ou não, essa idéia tem uma espécie de aclamação universal em torno de si.
A capoterapia, no entanto, como a própria capoeira, tem razões de sobra para não brigar contra a tese de que a nossa criança interior precisa de oxigênio, quer brincar de roda, ou brincar na roda, como é um de seus lemas, que é também um folguedo legado de nossos ancestrais afro-descendentes. A alegria chega a ser uma regra, respeitada em todos os estilos e linhagens da angola ou da regional mais tradicional, joga-se brincando, brinca-se jogando...
A liberdade de mexer o corpo de modo rítmico e sistêmico é um glorioso momento para os capo terapêuticos, oportunidade em movimentar a cintura, os quadris, os braços, as pernas e o abdômen, sem preocupação ou regras rígidas...
O conjunto desses movimentos, reforçados e estimulados ao som das palmas, das cantorias, ao lado do coro e das coreografias, produz um efeito mágico... Liberta nossa alma de nossos sustos e de nossas sombras e nos transporta para uma atmosfera de transcendência em que somos crianças libertas que sorriem e cantam a alegria de viver, de respirar e de todo o prazer que provem de nosso corpo e chega até nossa alma irradiante e embevecida de amor ao próximo e a nós mesmos... Somos o uno. Somos o universo. Somos a soma de toda beleza de uma união perfeita de irmãos e irmãs. Somos o amor pelo outro e por nós mesmos.
Nosso corpo se torna a porta de nossa alma, nossos olhos, de óculos ou não, não podem deixar de se molhar nessa cirando cósmica da roda vida da capoterapia... Nossa alegria contagia.
Qualquer busca para traduzir tais momentos e tal dinâmica em palavras será sempre estimulante. O que se quer é dizer que se o corpo precisa estar em movimento para ser e estar vivo, então não devemos nada a ninguém, pois temos a capoeira e a capoeira tem a capoterapia...
Se o tai chi chuan se tornou a poderosa fonte de longevidade e saúde do povo chinês, nós temos uma resposta em nossa língua e nossa cultura: a capoterapia. A capoeira retraduzida e atualizada no conceito da ludicidade sem limites, sem idades, sem barreiras, sem preconceito ou prejuízos a ninguém. Ela traz apenas benefícios a uma população carente de opções, a melhor idade do prazer, o mais básico direito à cidadania, razões sem medos ou fronteiras para o prazer de viver.
Falar do cunho social da capoterapia, então, é mais tranqüilo ainda. Embora nunca o suficiente.
A capoeira tem sempre uma galera enturmada. A capoterapia se beneficia dessa lógica. A união em torno dos propósitos e do ethos da capoterapia é um tratado implícito, assinado pelos olhos e pela fala entusiástica de seus participantes. A conversa animada nem precisa ser trabalhada, muito antes precisa ser controlada, pois os objetivos comuns, orientados pela batuta competente de Mestre Gilvan e sua equipe, são articulados com facilidade em razão de toda a rede de relações estabelecidas no cotidiano das atividades.
O grupo social que se forma na malha das relações que produzem e que são produzidas pela capoterapia, é sólido. Relações familiares seguem esse fluxo e se tornam parte disso. Filhos e netos se orgulham em estarem presentes nos eventos e manifestações da capoterapia. Ninguém quer ficar de fora!
O carinho e a felicidade que emana das reuniões e sessões de capoterapia são contagiantes. O sorriso das pessoas, os abraços ostensivos, tudo traduz essa união e esse espírito coletivo de crescimento de paz, somado, multiplicado pela porção de cada coração ali enfileirado. Uma só voz, respondendo em coro as perguntas cantadas pelo puxador na eterna festa, que só para quando precisa ouvir as palavras e reflexões sábias e cheias de emoção do mestre da festa, o Mestre Gilvan.
Assisti ao começo desse movimento com uma felicidade e uma empolgação que hoje sei comedida e cautelosa... Era muito acreditar no sucesso maravilhoso que o trabalho do meu amigo Mestre Gilvan atingiria com o andar da carruagem do seu esforço e com a colaboração de pessoas tão empenhadas como sua esposa, Dona Sônia, que mesmo no meio atropelado de momentos de difícil coordenação de tantas pessoas e tantas expectativas, nunca perdeu a sua serenidade e o seu sorriso gentil para todas e todos que se acercam dessa experiência.
Vejo o crescer dessa onda e dessa euforia e ainda me sinto distante de tudo, pois a vontade não é estar perto, é estar dentro, dessa maravilhosa emoção de servir a uma causa de tão relevante resultado, propiciando felicidade e melhorias de saúde e qualidade de vida às centenas de senhoras e senhores de qualquer idade, da melhor idade, do melhor da idade, colocando seus lenços coloridos no pescoço e retendo no coração o prazer de cada momento, generosamente oferecendo seus sorrisos e abraços a quem chega perto, num convite irrecusável: venha ser gente com a gente, venha ser feliz na nossa felicidade, venha pra nossa roda, venha pra nossa festa, venha viver a nossa emoção e compor conosco a alquimia no caldeirão de vida borbulhante que enche os olhos e o coração mesmo do mais cético que chega perto. Não dá para resistir.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Competições de Capoeira: a busca da afirmação!!




Estamos vivendo novas investidas na tentativa de muitos idealistas de dar sentido às competições de capoeira...!
Os capoeiristas via de regra ainda não entendem isso como uma grande prova de sua competencia, ou memos de grandes méritos no fato de ter vencido ou se classificado bem em uma competição de capoeira.
Esse assunto vem de muito longe.
Desde os primórdios da própria capoeira regional do Mestre Bimba ele já trazia como parte de sua estratégia de afirmação da capoeira como luta, diversos desafios a que o próprio Mestre Bimba se envolveu, tanto quanto seus alunos mais tarde, diante de algum adversário que se sentia confortável para enfrentar o que era algo muito forte e bastante respeitado então, a Capoeira Regional de Mestre Bimba...!!
Diversos desses combates aconteceram em ringues mesmo... na imprensa e em muitos livros, podemos até hoje são encontrar fragmentos dessa fase e de diversos combates a que fizerem jus alguns alunos do Mestre, ou dele próprio.
Portanto, uma das coisas que os capoeirstas modernos devem saber é que as competições SEMPRE fizeram parte da capoeira mais avançada, em termos de técnica e como papel social da capoeira... pois as competições servem para tornar a capoeira um esporte competitivo, tendo como sonho ou meta a de atingir espaços tão nobres quanto uma olimpíada...
Hoje vemos a capoeira presente em combates, através de lutadores, quase sempre jovens atletas, que naturalmente não possuem a cultura tão ampla e tão abrangente quanto dispomos na capoeira. Com isso eles quase sempre treinam tambem outras modalidades para se preparem para enfrentar adversários de outros estilos. Na ápoca de Mestre Bimba e seus alunos isso era diferente, pois a capoeira era, ela mesma, dotada de competência marcial para enfrentar adversários de qualquer outra modalidade.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Caminhos da Capoeira - entrevista a Informação Social - Palmas - TO


Entrevista concedida a Cláudia Santos

Mestre Squisito, para ele a capoeira é um instrumento de inclusão social

Falta a gente saber para onde quer ir com a capoeira


Conhecido como Squisito devido a seu porte alto e magro e fisionomia marcante, o mestre de capoeira Reginaldo da Silveira Costa, 56 anos, também é mestre em Sociologia e especialista em Educação Física e Ciência da Informação. Mineiro, do município de Montes Claros, vive em Brasília há 36 anos e é contrário à violência na capoeira, encarando essa arte através de seus aspectos culturais, históricos e sociológicos. Em entrevista exclusiva à Informação Social, durante o 6° Open Fest Internacional de Capoeira, ocorrido em Palmas – TO, no mês de dezembro, Squisito falou sobre os problemas e desafios enfrentados pela capoeira no Brasil e no Tocantins. Por Cláudia Santos


Informação Social - Fale sobre você e como começou na capoeira.
Squisito - Olha só, eu cheguei em Brasília em 1973 e comecei a andar por Brasília, próximo a um lugar que foi o meu primeiro emprego, que era um jornal, e lá tinha a academia de capoeira do mestre Tabosa. Eu sempre passava ali perto e via aquele movimento. Com esse contato, muito rapidamente eu me interessei pela capoeira. Então eu cheguei naquele ano e, já em agosto de 1974, eu comecei a fazer capoeira com o mestre Tabosa. E, desde então, nunca parei. Com uma semana ganhei o nome de Squisito.

IS – E por que esse apelido?
Squisito - O capoeirista tem características que muitas vezes são meio como a sombra dele. Por exemplo a pessoa ser meio exótica ou muito alta. Eu comecei com 20 anos e já era adulto, muito magro, muito desengonçado. E como pra começar a capoeira todo mundo é um pouco esquisito... E eu era um pouco mais esquisito que a média! Na primeira e segunda semana de treino ele (mestre Tabosa) colocou alguém para treinar comigo e aí disse: Você aí, esquisito! Eu olhei primeiro para conferir se já tinha alguém com essas características. Aí ele falou: É você bem aí mesmo! Nunca discuti isso e, depois de um certo tempo, percebi que isso me dava uma guarida. Podia errar, fazer um monte de bobagem no jogo, e como eu era o esquisito, isso era uma espécie de álibi. Aí foi ótimo! E mais tarde eu percebi que os capoeiristas, de modo geral, que tem maiores dificuldades, que tem mais coisas para superar, são os que se empenham mais, se identificam mais. As pessoas que tem mais dificuldades, de modo geral, abraçam a capoeira de uma maneira mais profunda.

IS – E você superou suas dificuldades através da capoeira?
Squisito - Superei a maioria! Pelos menos aquelas mais conhecidas, pois às vezes você tem sombras no seu psiquismo e nunca irá superar porque você desconhece. Mas aqueles medos, aquelas inseguranças... Um adulto jogando capoeira aos 20 anos, tem uma tendência de ser uma pessoa muito limitada. Então eu, por exemplo, jamais superei necessariamente as limitações, mas passei a conviver bem com elas, a aceitar, a não tentar brigar com as minhas características físicas, já que sou um cara alto. E eu nunca tentei fazer nenhum tipo de “presepada” que dependesse dessa alavanca com as costas, esse salto no escuro... Nunca me meti com esse tipo de coisa. Na verdade eu até tentei, mas tomei uma queda tão feia que desisti rápido! (risos) Vi que isso não era para mim e procurei desenvolver bem outras coisas. Desenvolvi um boa velocidade, elasticidade, uma boa noção de jogo. Depois de algum tempo, eu me incursionei por um outro terreno que, para mim, era uma negação absoluta, que era a musicalidade. Porque a maioria de nós tem essa limitação. E eu sou um grande ouvinte de música. Adoro muitos tipos de música. Mas eu próprio ser o músico, ter a capacidade de me articular com a música? Mas a capoeira acaba te empurrando para isso e aí cheguei a fazer berimbaus para mim mesmo, desenvolvendo mais um talento que era a capacidade de ser um artesão. A capoeira te induz a isso. É uma coisa que não tem limites. Todos os caminhos que você quiser explorar com a capoeira, você pode. Ela sempre vai lhe trazer novos desafios. Em alguns você se dá bem, em outros, nem tanto.

IS – A capoeira é luta, dança, cultura? Quais elementos compõem essa arte?
Squisito - É muito difícil apontar todos eles em um papo informal e despreparado assim. O que posso te dizer é que eu tenho um livro que escrevi chamado Capoeira: o caminho do berimbau, onde eu tento discutir isso que você está perguntando, quais são os potenciais da capoeira. Então a capoeira tem uma musicalidade muito forte, que influencia no ritmo do corpo, na capacidade de dançar, que você pode ter antes de se iniciar na capoeira. E depois de fazer algum tempo de capoeira, provavelmente seu domínio corporal e rítmico provavelmente serão ampliados, assim como sua noção de espaço, de movimento e de equilíbrio. Outro elemento, ainda, da capoeira, é defendido por um estudioso lá de Brasília. Ele andou descobrindo que a capoeira amplia seu plano de visão, que ele chama de visão periférica da capoeira. E a capoeira aumenta suas percepções para um ângulo que praticamente nenhuma outra coisa no mundo faz a pessoa desenvolver. Eu estou conversando com você eu estou vendo as cadeiras lá atrás. Esse é um desenvolvimento que a capoeira te conduz a isso. Porque dentro do jogo, como a capoeira é muito dinâmica... de giro, de círculo, de movimentos... E num espaço restrito, você acaba tendo que aumentar o seu ponto de percepção. Isso é um coisa que nenhum outro esporte consegue alcançar.

IS – Esses são aspectos de influência sobre o corpo?
Squisito – Sim, a capoeira é inteligente do pondo de vista corporal. Ela também consegue alguns mecanismos de alavanca, de equilíbrio, de ritmo que acaba se tornando um instrumento de inteligência corporal. Um professor de Fisiologia do Exercício disse numa palestra sobre a inteligência desse esporte. Disse que a capoeira é uma prática que desenvolve a maior inteligência corporal que ele já viu e analisou. Por causa das possibilidades que um jogo, um treino e um exercício de capoeira te leva, ela vai desenvolver inúmeras possibilidades de você encontrar mecanismos, esquivas, alongamentos, percepções, ritmos, velocidades, explosões. A capoeira acaba proporcionando tudo isso. Ou seja, uma inteligência corporal impressionante. Eu tenho visto isto com os pais e mães com crianças pequenas e que ficam impressionados com o que a capoeira induz os filhos a fazerem. Mas ainda acho que um outro potencial desconhecido e pouquíssimo utilizado da capoeira é o fato dela ser um mecanismo de cidadania. Através do sentimento de pertencimento que ela proporciona, a capoeira é um instrumento de inclusão social que atinge não só pessoas que tenham um problema de risco social, mas para a inclusão de qualquer grupo humano. Até para os europeus, que são cheios da grana e tem dificuldades para se sentirem parte de uma convivência social, a capoeira traz isso para eles. Então por isso que eu digo: é praticamente impossível alguém mapear todas essas coisas.

IS – Existe uma função importante que também existe nessa arte, que é o ambiente histórico cantado nas músicas de capoeira, falando de grandes capoeiristas ou das relações entre senhor e escravo no período colonial.
Squisito - É tradição oral que se chama isso. A tradição oral é um dos fenômenos que a capoeira é detentora, por ser descendente de uma cultura com características afro-brasileiras, principalmente africana, trazendo uma relação tribal, uma tradição oral e ritual. Então a capoeira vem trazendo esses elementos de tempos imemoriais, que estão dentro da cultura da capoeira. Então a tradição oral é a grande forma de reprodução da cultura da capoeira.

IS – Qual a diferença entre a Capoeira Regional e a Capoeira Angola?
Squisito - Você irá encontrar algumas definições. Primeiro a Capoeira Angola está dentro da capoeira regional. O mestre Bimba, que criou a Capoeira Regional, primeiro foi angoleiro. E ele trouxe o uso do berimbau, trouxe muitas músicas que ele ouviu, mudou um pouco o ritmo e a forma de cantar. E a capoeira é uma coisa dialética, como dizia o mestre Onça Tigre. Então ela vai dialogando com as cenas, com as condições, com os momentos da história. Então a Capoeira Regional é um mecanismo de se criar um diálogo com uma época em que, na passagem do período colonial para o período moderno no Brasil, existia uma lacuna. A capoeira não tinha como se tornar uma coisa que se pudesse transitar no meio do consumo do século XX na forma original dela. Ela não tinha um código de organização, não tinha metodologia, não tinha fundamento pedagógico, nem estrutura organizacional dela própria. E o mestre Bimba trouxe isso tudo. Empacotou tudo isso e, na verdade, o mestre Bimba não chamou de Capoeira Regional. Ele criou um negócio chamado de Centro de Cultura Física Regional, como se fosse assim dentro da região da Bahia. Lá ele criou um mecanismo de aprendizado de uma cultura física, que era daquela região. E essa malandragem dele de criar esse nome, mesmo todo mundo sabendo que o que ele ensinava era capoeira, fez com que a regional de Bimba se destacasse. Mais tarde a capoeira angola apropriou um monte de coisas da capoeira regional, apropriou festas de eventos, batizados de capoeira, formatura de capoeira, graduação de capoeira. E a Capoeira Angola seguiu alguns passos da Capoeira Regional até onde interessava, mas a Capoeira Regional tem a capoeira angola dentro de si, não tem como separar.

IS – Ouvi falar que existem cada vez menos iniciantes na capoeira, é verdade? Por que isso estaria acontecendo?
Squisito - A capoeira vive um momento de crise. Ela cresceu muito nas décadas de oitenta e noventa. Ela teve um boom de crescimento e os próprios capoeiristas não souberam administrar essa vantagem. Inclusive eu fiz um estudo e constatei que dos capoeiristas, com os mais variados níveis, o grupo que tem menos gente é o dos sem corda. Ou seja, está existindo uma inversão da pirâmide social da capoeira. E isso é um sintoma absolutamente claro de que a capoeira perdeu a força, perdeu a força social dela.

IS - E no Tocantins?
Squisito – Acredite, o Tocantins não foi diferente dos outros Estados no sentido de crescimento. No final da década de 1980 e início de 1990, chegou o Soldado (capoeirista) aqui e ele fez uma química forte social por aqui. Arrastou centenas de capoeiristas para a capoeira no Estado. E durante a década de 1990, a capoeira no Tocantins cresceu, cresceu, cresceu. Mas a partir da virada do milênio ela começou a entrar em decadência, pela mesma razão que aconteceu em todo o Brasil. No Tocantins, a Terreiro continua, talvez, sendo o grupo mais forte. O único grupo, talvez, que consiga reunir tanta gente num evento. Mas no passado, a gente chegou a fazer batizado aqui com 500 pessoas, coisa que não acontece mais.

IS – Mas qual o motivo dessa decadência na capoeira?
Squisito - Os próprios capoeiristas, via de regra, são em parte responsáveis por isto. Existe um conflito, uma luta de poder que acaba implodindo a capoeira. E existe uma outra coisa também na sociedade que é o chamado modismo: o que tá na moda hoje, pode não estar na moda amanhã. E as pessoas vão muito atrás do que todo mundo está fazendo. Esse é um mal do ser humano de querer estar sempre onde todo mundo está. Por isso vive em cidades apertadas, em ruas cheias de carros. A gente tem os dias da semana onde todo mundo trabalha igual. Podia muito bem um grupo ter feriado na segunda, outro grupo ter descanso na terça, aí você diluía a loucura da organização humana. Mas a gente não consegue! Então é um "boom" da moda que passa e a gente também passou. Esse é um outro lado.

Outro fator que considero é que nos falta um pouco de horizonte. Os grupos, de um modo geral, não sabem bem o que querem. Se você sair andando nessas secretarias do Estado perguntando o que os capoeiristas vieram oferecer e pedir, 99% deles foram lá pedir exatamente a mesma coisa: verba para fazer batizado, para fazer camiseta, para fazer cartazes. Ou seja, falta criatividade, falta horizonte, falta a gente saber para onde quer ir com a capoeira. E aí vou lembrar Sêneca, que lá pelo ano 10 d.C. disse que não existem ventos a favor para o marinheiro que não sabe para onde quer ir. Esse mal, em grande parte, está instalado dentro da capoeira.

IS – E que horizonte seria esse?
Squisito - Eu escrevi uma vez sobre o que chamo de Síndrome da Malta, que existe dentro da capoeira. Ela é mais ou menos o seguinte: o capoeirista tem um sentimento de pertencimento a um grupo, que rejeita o que é estranho. Para o capoeirista, o estranho, que é de outro grupo, vai sempre querer derrotá-lo, demonstrar que é melhor do que ele. E a maioria das vezes, quem coloca esse tipo de “pilha” é o próprio mestre, que alimenta a competição, o medo, o conflito e o isolamento. Esse isolamento impede a união dos capoeiristas para que se busque uma mesma política, um crescimento de todos. A gente unido, definindo o que somos, o que queremos e o que podemos tornaria possível materializarmos possibilidades enquanto arte, enquanto cultura, enquanto jogo, enquanto educação. Eu já tentei propor isso, inclusive como lei federal, que a capoeira se tornasse um conteúdo para a disciplina e não uma disciplina que pega um capoeirista pra dar aula ali no quintal e diz que a capoeira está na escola. A capoeira vai estar na escola o dia que o professor de história chegar, abrir a página e dizer: hoje vamos falar sobre o fenômeno da capoeira na história do Brasil. Sobre como os políticos se apropriaram da capoeira, sobre o que significou a guarda negra no Rio de Janeiro. Sobre como a capoeira participou da guerra do Paraguai ou sobre qual é o papel da capoeira no debate abolicionista. O professor de história poderia ensinar isso e para isso não é necessário um professor de capoeira. E aí você criaria dentro da sociedade brasileira uma consciência sobre a capoeira, para que essa pessoa pudesse ser uma aluno de capoeira, mas com alguma noção do problema, do que se tratava. Porque quando a pessoa chega sem informação nenhuma, em que ele vai acreditar? Na primeira coisa que ele ouvir! E provavelmente essa primeira coisa não será uma informação consolidada.

IS – Alguns problemas apontados por capoeiristas no Tocantins sobre o esporte no Estado é a prática de auto titulação pelos praticantes. Por exemplo, o capoeirista se auto intitula mestre de capoeira, sendo que estaria em um nível inferior, só para conseguir com mais facilidade emprego como professor de capoeira. Seria importante fazer o controle da qualidade dessa capoeira?
Squisito – Só é possível pensar em regulação no momento em que a sociedade se envolver com a capoeira. Porque o envolvimento que a sociedade tem com a capoeira é muito periférico. A pessoa é diretora de uma escola e conhece um capoeirista qualquer, aí ela o convida pra fazer uma apresentação. Então ela leva meia dúzia de pessoas, joga lá e você olha aquilo e acha que o cara sabe tudo de capoeira. Então ela o convida para dar aula em uma escola. Então a sociedade ainda pensa na capoeira como uma coisa que é uma manifestação desorganizada... de uma molecada que se reúne para fazer nada e dali muitas vezes saem alguns que são perigosos. Uma vez cheguei em Fortaleza para falar em uma entrevista ao vivo. A gente estava fazendo um evento em Fortaleza e o tema do evento era “Capoeira contra as drogas e a violência”. Quando a gente entrou na cena do programa, um programa com muita audiência, um espectador queria fazer uma pergunta no ar. Então colocaram o cara no ar falando assim: “Como que vocês querem falar de paz na capoeira se o próprio professor do meu primo quebrou o queixo dele em dois lugares e mandou ele para o hospital? Que paz é essa que vocês querem?!” Essa pergunta foi à queima roupa, no programa ao vivo! Então eu falei que a única coisa a fazer é mudar de professor. Existe opção! Agora se você prefere escolher um cara valentão para ensinar seus filhos, seu primo. É uma escolha sua! Mas eu garanto para você que existe opção. Só depende do seu nível de informação. Se você vai colocar o seu filho para aprender alguma coisa, procure saber com quem ele está aprendendo.