sábado, 5 de junho de 2010

Capoeira & Educação: Em busca de um diálogo interdisciplinar















“A capoeira é amorosa, não é perversa.
Capoeira é mandinga de escravo africano no Brasil.
Um costume como qualquer outro.
Um hábito cortês que criamos dentro de nós.
Uma coisa vagabunda.”

Mestre Pastinha



Este texto foi desenvolvido através da adaptação de insumos extraídos do livro Escola, o Terceiro Grau da Capoeira, ainda não publicado, de minha autoria, cuja intenção é subsidiar o debate entre os universos da escola formal e da instituição da capoeira, representada nos grupos e nas linhagens tradicionais da capoeira, sendo linhagem um termo que visa atribuir uma orientação das escolas de capoeira, ou seja, as filosofias adotadas enquanto organização, preceitos de trabalho, filosofia de aprendizado, tradições, rituais seguidos na realização de rodas e eventos, entre muitos outros aspectos que se convertem uma escola própria de cada uma dessas linhagens e suas variantes.

Muitos insumos também são obtidos da vivência dentro do universo de debate em torno de tão estimulante tema: capoeira na escola, capoeira e a escola, capoeira versus escola, educação e capoeira, capoeira como parte de uma educação integral, enfim... Infinitas abordagens que o tema permite.

Assim, embora tantas outras possibilidades existam para a abordagem desse debate, irei privilegiar alguns approaches que foquem potenciais inerentes à capoeira enquanto instituição que lida com práticas culturais, educacionais, sociais, morais, éticas, desportivas, corporais, etc. Logicamente com um universo tão rico de possibilidades, tivemos que privilegiar alguns desses aspectos para focar nesta nossa interação inicial.
Os desdobramentos são tão amplos quanto o tempo e a importância que se dê ao tema... Sendo presumível que não existe limite para tal debate.

Sabedores que temos um tempo limitado para essa discussão inicial, trouxe dentre os insumos deste texto alguns elementos que permitam ilustrativos subsídios quanto ao potencial de suporte mútuo entre a capoeira e a educação, num sentido tanto quanto no outro.
Também entendemos como oportuno anexar um discurso proferido na Câmara dos Deputados, justamente debatendo a questão da capoeira e a educação como temas recorrentes e da maior importância para o povo brasileiro.

Fundamentos Didáticos na Capoeira

A capoeira, enquanto disciplina didática e pedagogicamente alinhada possui em seus conteúdos, já estando inserida no debate acadêmico de nível de pós-graduação e o acervo disponível decorrente de sua produção até o momento, possui no seu bojo recursos excelentes, bastante ricos em abrangência e forma sendo, portanto, pertinentes ao objetivo a que se destina, qual seja, sua flexão e reflexão sobre as dimensões crítica, construtiva e integral como matéria do ensino de educação física, esporte educacional ou ainda como foco de interesse temático para estudo em outras disciplinas, como a História, Artes (dança, teatro, fotografia, etc.), Sociologia, Antropologia, Política, Fisiologia do Esporte, Psicologia.

Tangencialmente já temos sabido de estudos envolvendo a capoeira em outras disciplinas, como a Matemática, o Português e a Música.

Se considerarmos, ainda, o potencial da Capoeira como produto e como gerador de elementos didáticos e pedagógicos para uma escola em qualquer nível, perceber-se-á que os ajustes naturais e uma adaptação espontânea serão parte da sua dinâmica expansiva e por isso poderemos ir adicionando diversos outros aspectos que deverão fluir desses conteúdos dentro da sua evolução e maturidade.

Particularmente os impactos mútuos que se darão entre a capoeira e a educação física, vez que a prática capoeirística possui suas esferas simbólicas, contendo rituais e valores, explodindo através de uma alquimia urbana, propagada através de uma publicidade subliminar oralizada que responde às angústias, desejos e ansiedades de uma geração inteira de consumidores, crianças, adolescentes e jovens, senão mesmo os adultos e clientelas especiais (excepcionais, deficientes físicos, terceira idade, e outros) – caso seja abordada sob as opções adequadas a cada público.

Por outro lado, a educação física, enquanto disciplina de tantos recursos didáticos e pedagógicos peculiares, particularmente por suas metodologias cientificas sempre planificadas, suas abordagens criteriosas e adequadas do ponto de vista etário e psicológico – estratégias de superação de deficiências específicas, através de exercícios localizados ou estímulos fisioterapêuticos, dinâmicas de grupo, além da fusão que desenvolve, através de práticas interdisciplinares, o que a enriquece sempre muito e a torna uma disciplina dotada de tão espontânea adesão dos alunos.

Existe uma natural reciprocidade entre as duas disciplinas e isso se torna algo profícuo e complementar, acrescentando a ambos os insumos positivos e uma série de expansões de seus recursos inatos.

A escola tanto quanto a capoeira fazem parte dos espaços complementares da vida social - particularmente pela sua contribuição à esfera da formação e ampliação da consciência crítica das comunidades-clientelas, sendo sempre parte no debate/competição social representado pelos grupos, o que também pode ser visto como capaz de atuar na dialética do movimento histórico e político de ambas as disciplinas.
Inevitavelmente estará aí recorrente uma luta de cunho material e econômico, ético e moral, bem como da sempre presente dicotomia social pela convergência dos pares em contraposição à divergência e competição naturalizada para com os outros, num debate que poderá se prolongar por períodos imponderáveis de tempo.

Essa xenofobia é recíproca e faz parte de um cenário comum entre as disciplinas vivas nas próprias universidades, em grande parte questões de natureza política e implicitamente aspectos materiais e do poder econômico por trás do debate: farinha pouca o meu pirão primeiro, como reza a sabedoria popular.

Nesse sentido vemos que a Escola terá que entrar e debater esses conflitos, mesmo se considerarmos que ela, hoje, na sua atuação de educação geral ainda não resolveu - quiçá o possa algum dia fazê-lo, seus próprios e internos problemas, sendo visível que está ainda longe de superar muitos de tais desafios frente a percalços de natureza sócio-econômico-político-cultural, inerentes a sua situação geral, que lida com as suas diversas crises e dimensões sociais.

Já estão presentes na escola outros tantos conflitos sociais e o que temos visto é recrudescer cada vez em maior número, exemplos de fatos em que explodem essas questões, diversas vezes de forma drástica e dramática: sob o impulso primevo da violência mais absurda, que tem registrado mortes e outras formas mórbidas de agressões fatais. Vale citar e destacar o já conhecido e reconhecido fenômeno do bulling é outra dessas patologias sociais em franco desenrolar nos espaços das escolas.

Do lado da capoeira não é diferente.

Diversos processos competitivos sempre fizeram parte do dia-dia da capoeira, entre eles questões de competição de natureza sócio-econômicas e de poder, como é o caso das federações, ligas e confederações, que disputam o direito de representar a capoeira desportiva, junto às instâncias oficiais, como o Comitê Olímpico Brasileiro – COB, Ministério do Esporte, Ministério da Cultura, etc.

Os grupos de capoeira, estrutura de organização celular mais comum da capoeira institucionalmente representada, trás outras tantas questões e conflitos que se arrastam a décadas no Brasil, através do fenômeno que se caracteriza como uma síndrome das maltas que se manifesta através de diversas facetas, que vão desde a luta por espaços até aos conflitos violentos, dentro e fora das rodas de capoeira, lugar-comum da manifestação desses problemas.

Pode-se antever a capoeira na escola e sua inserção sociocultural no seio das turmas e classes, tornando-se assim parte do acervo psíco-sócio-cultural, passando a compor e a interferir na educação e no seu debate, parte de todo o cenário acima descrito.

Alguns aspectos podem ser discutidos das relações da capoeira com a educação e de seus possíveis papéis e funções, onde sua práxis pode tranquilamente ser visualizada interagindo como parte bastante efetiva de instrumento didático-pedagógico na Escola.

Alguns deles podemos analisar como se segue:

Como conteúdo na Educação física – a capoeira dispõe de recursos de aperfeiçoamento e de superação de dificuldades motoras, inatos em sua prática que, latu-sensu, pois isso se torna uma conseqüência implícita em sua prática continuada, atribuindo aos praticantes uma melhoria no domínio corporal, seja do ponto de vista do alongamento, flexibilidade, explosão, equilíbrio, agilidade, força, ritmo, resistência, além de um indiscutível ganho nas funções aeróbicas, anaeróbicas, muscular, cardio-vascular e, assim, na saúde de modo geral (Xaréu, 1990).

Componente do processo de Integração social – pelo fato de ser uma prática eminentemente coletiva, a capoeira torna-se num importante aliado no sentido da promoção da integração das pessoas e de sua solidariedade mútua e crescente. Uma energia social de grandes proporções é gerada na prática da capoeira e essa energia não deve ter sua importância, sentido e direcionamento desprezado. Essa energia, se bem canalizada e dirigida, torna-se um elemento catártico e altamente positivo no grupo. Um risco que daí decorre, é a reprodução dos grupos de poder (popularmente denominado de panelas) no seio das escolas, tornando-se, se levado ao extremo, num empecilho ou até mesmo numa deformação, haja vista a facilidade com que eclode a competitividade pela afirmação dos membros-adeptos dentro do grupo social e o conseqüente lado negativo daí decorrente.

Elementos lúdicos - uma importante corrente interpretativa da História da capoeira, a insere herdeira do bojo cultural do elemento afro, em sua perspectiva mais absolutamente original, extensiva em praticamente todos os modelos de vida social dos negros, considerados em toda a extensão de sua diáspora é a ludicidade, a brincadeira, folguedos ritualizados sob diversas formas e categorias, presentes no trabalho – as colheitas cantadas e dramatizadas dos negros americanos; as pescas cantadas e ritualizadas pelo Mestre-pescador – transformado inclusive no folclore da puxada-de-rede; enfim, teria sido um passatempo despreocupado e legítimo os primeiros passos da capoeira?
Muitas outras formas desse passatempo são encontradas em diversos folguedos e folclores de uma enorme diversidade de regiões no Brasil e mundo afora, e na capoeira isso também está presente – mesmo que tenhamos que considerar uma gama razoável de influências brancas hoje encontradas na capoeira que impactam esse seu potencial, o que, no entanto, não elimina suas características e potenciais lúdicos originais, particularmente se considerada a Escola como seu ponto de manifestação e prática.

Jogos e competições educativas – no percurso da prática e da História da capoeira, os seus elementos desportivizados seriam sem dúvida os mais privilegiados e utilizados como campeadores institucionais. Isso se dá principalmente pela vontade que muitos capoeiristas e mestres têm de ver a capoeira transformada em modalidade desportiva, seja pelo prestígio que o esporte goza dentro do interesse da sociedade desde os primórdios dos jogos gregos moderna, seja por ser esse aspecto algo capaz de reforçar a aceitação social da capoeira, seja, enfim, pela trilha organizadora que tal enfoque permite, a adequação da capoeira como modalidade desportivo-competitiva é indiscutível e isso se traduzirá sempre como um manancial didático-pedagógico explorável sob condições as mais diversas possíveis e imagináveis, dependendo exclusivamente da manutenção de um espírito educativo que tais competições devam manter .

Potencial interdisciplinar – a capoeira vem sendo estudada sob uma infinidade de disciplinas, entre as quais, só para citarmos algumas, encontramos: História, Sociologia, Antropologia, Arte, Música, Ecologia, entre outras e, embora não caiba aqui recortarmos as produções que essas áreas têm viabilizado na compreensão da capoeira, podemos perceber diversos usos-potenciais que as abordagens interdisciplinares revelam na capoeira, seja viabilizando a manutenção de uma grade de horários rica em atividades, seja permitindo uma incursão dos alunos por outras disciplinas e experiências.

Numa visão mais prática poderíamos sugerir experiências com pinturas, colagens e esculturas; pesquisas envolvendo a História, personagens e fatos que tiveram importância na vida social do País, que foram praticantes, admiradores ou estudiosas da capoeira (temos diversos registros de personalidades nacional e estrangeiras nessa condição); experiências com músicas experimentais – além da música típica utilizada na capoeira, experimentando outros tipos de instrumentos e efeitos sonoros obtidos pelos alunos; pesquisas, enfim, utilizando aspectos sociais, étnicos e antropológicos da capoeira e dos capoeiristas, que mantenham o interesse dos alunos dentro da disciplina e que fomente, da mesma forma, a sua aproximação com outras disciplinas dentro da Escola e da vida dos alunos.


(continua na próxima semana...)




2 comentários:

  1. Percebi alguns camaradas pensando que violência seja sempre um estado de espírito agressivo, ameaçador, destrutivo, etc...
    Não é só isso.
    Existe a violência de valores... Existe a violência simbólica... Além da violência do preconceito, presente inevitavelmente onde os bombados comandam, os "fracos" não tem vez! Isso é violência ou não??

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  2. Prezado amigos,
    Minha monografia A história da capoeira no Brasil: da marginalização a condição de patrimônio cultural foi publicada e estará disponível em 23/07/2010 00h45 no Conteúdo Jurídico no seguinte link: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=.27659

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