Ginga da Melhor Idade
(texto do Mestre Skisyto
originalmente publicado no livro do
Jornalista Mano Lima & Mestre Gilvan, como prefácio)
Tudo que reluz nos cabelos brancos é ouro...
Finalmente encontro o grupo de capoeira que tem um time inteiro de estrelas, incapaz de fazer mal a qualquer adversário, uma equipe incapaz de perder a calma num jogo...
Educado, sensível, atento a todos os movimentos e todos os momentos do evento, desde a conversa mais longa, até a roda mais animada.
Esse grupo é animado e não perde um evento. Nem uma festa. Nem um passeio. Nem uma boa roda, claro!
É um grupo perfeito! Com uma alegria contagiante. Que arrasta as famílias para os eventos, todos encantados com a energia que irradia dele.
Estou falando uma gota d’água no mar da grandeza que a galera da melhor idade representa.
Pessoas que são porta-vozes de quem depositou sua confiança numa nova esperança e que a cada dia supera um mar de equívocos, mitos e preconceitos que ainda cultuamos e que giram em torno do envelhecimento, mormente no Brasil, onde a maioria da população se encontra numa faixa de idade relativamente mais jovem.
Provam a cada dia que podemos superar os limites de nossas crenças equivocadas de que uma vida feliz pertença somente aos que tem juventude cronológica e força física.
Esse movimento ajuda também a derrubar de vez um outro mito recorrente que entende que a capoeira é destinada aos portadores de força e destreza física e/ou de talentos acrobáticos geneticamente herdados ou desenvolvidos, e que é praticada sempre sob a forma de competição e movimentos viris.
Essas pessoas atenderam ao chamado ao pé do berimbau – expressão usada na capoeira para definir a dupla que se cumprimenta entre si e ao mestre do berimbau para iniciarem um jogo. As quais deram uma volta no mundo (fazer um círculo em volta da roda de capoeira) e entraram na roda ao seu próprio tempo e passaram a receber em troca um brilho novo nos olhos, muita energia e felicidade!
A lição que elas e eles, senhoras e senhores de uma dignidade e uma alegria contagiante, nos dão, não tem limites...
Avós e avôs, tias solteiras ou viúvas, mães de outras mães mais jovens que transmitem também sua empolgação pelos resultados que a capoeira traz cada dia para aqueles que poderiam ser os sem-futuro, caso se submetessem ao preconceito e aos equívocos de tantos anos que vivemos sob a égide do viver é coisa dos jovens.
O que vemos na capoterapia é a demonstração natural de que viver e ser feliz não tem idade. Que o bem estar de fazer capoeira é indiscutível. A alegria de brincar ao som do berimbau é democrática e universal.
A capoeira motiva emocional, física e socialmente e traz benefícios para a saúde em qualquer idade, mas no caso da melhor idade esses benefícios vão além...
Emocionalmente, a capoterapia dá suporte através da alegria, da música, do teatro mágico dos movimentos e das coreografias infinitas que vão acontecendo em volta e dentro da roda, sob a batuta mais que competente do Mestre Gilvan, movimentando em processos lúdicos e embalando a alma guerreira, algumas vezes cansada, vinda de momentos sem esperança, pela prostração quase obrigatória de nossas regras sociais hoje graças a Deus superadas. Vencendo uma gama enorme de barreiras.
A simples idéia de vencer a si mesmo e dar o primeiro passo para uma atividade nova, mandando para escanteio toda sorte de interpretações errôneas sobre os limites da terceira idade e sobre os requisitos e possibilidades da capoeira, já representa uma conquista para a alma de nossas guerreiras e guerreiros que procuram a capoterapia.
Vindos de camadas mais simples da população, só têm a sua própria vontade como motor para andar em direção à capoeira e abraçá-la com sua humildade. Trazem sempre a coragem de quem já não tem razão para aceitar verdades definitivas e restritivas à sua liberdade de escolha.
E o universo capoeirano, sempre generoso, abençoa esses novos capoeiristas, cidadãos conscientes e bem resolvidos com seu passado, seu presente e seu futuro, simplesmente abrem seus braços para a causa e a nova roda de amigos desde o momento em que nela pisam. E aprendem a amar o berimbau e todos os seus significados.
A auto-estima de uma pessoa que se encontra diante de tantos preconceitos e atravessa o portal da nova vida que a capoeira lhe proporciona só se amplia, se enche de orgulho, só faz sorrir a alma tantas vezes sem esperança e cansada de longas trajetórias de labuta, de sofrimento e de dificuldades por uma vida inteira de incansáveis lutas pela sobrevivência sua de seus descendentes.
Fisicamente, os benefícios da capoterapia tampouco têm comparação com nada.
É sabido que em certo momento da vida, tem-se a predisposição para um retorno à infância. Verdadeira ou não, essa idéia tem uma espécie de aclamação universal em torno de si.
A capoterapia, no entanto, como a própria capoeira, tem razões de sobra para não brigar contra a tese de que a nossa criança interior precisa de oxigênio, quer brincar de roda, ou brincar na roda, como é um de seus lemas, que é também um folguedo legado de nossos ancestrais afro-descendentes. A alegria chega a ser uma regra, respeitada em todos os estilos e linhagens da angola ou da regional mais tradicional, joga-se brincando, brinca-se jogando...
A liberdade de mexer o corpo de modo rítmico e sistêmico é um glorioso momento para os capo terapêuticos, oportunidade em movimentar a cintura, os quadris, os braços, as pernas e o abdômen, sem preocupação ou regras rígidas...
O conjunto desses movimentos, reforçados e estimulados ao som das palmas, das cantorias, ao lado do coro e das coreografias, produz um efeito mágico... Liberta nossa alma de nossos sustos e de nossas sombras e nos transporta para uma atmosfera de transcendência em que somos crianças libertas que sorriem e cantam a alegria de viver, de respirar e de todo o prazer que provem de nosso corpo e chega até nossa alma irradiante e embevecida de amor ao próximo e a nós mesmos... Somos o uno. Somos o universo. Somos a soma de toda beleza de uma união perfeita de irmãos e irmãs. Somos o amor pelo outro e por nós mesmos.
Nosso corpo se torna a porta de nossa alma, nossos olhos, de óculos ou não, não podem deixar de se molhar nessa cirando cósmica da roda vida da capoterapia... Nossa alegria contagia.
Qualquer busca para traduzir tais momentos e tal dinâmica em palavras será sempre estimulante. O que se quer é dizer que se o corpo precisa estar em movimento para ser e estar vivo, então não devemos nada a ninguém, pois temos a capoeira e a capoeira tem a capoterapia...
Se o tai chi chuan se tornou a poderosa fonte de longevidade e saúde do povo chinês, nós temos uma resposta em nossa língua e nossa cultura: a capoterapia. A capoeira retraduzida e atualizada no conceito da ludicidade sem limites, sem idades, sem barreiras, sem preconceito ou prejuízos a ninguém. Ela traz apenas benefícios a uma população carente de opções, a melhor idade do prazer, o mais básico direito à cidadania, razões sem medos ou fronteiras para o prazer de viver.
Falar do cunho social da capoterapia, então, é mais tranqüilo ainda. Embora nunca o suficiente.
A capoeira tem sempre uma galera enturmada. A capoterapia se beneficia dessa lógica. A união em torno dos propósitos e do ethos da capoterapia é um tratado implícito, assinado pelos olhos e pela fala entusiástica de seus participantes. A conversa animada nem precisa ser trabalhada, muito antes precisa ser controlada, pois os objetivos comuns, orientados pela batuta competente de Mestre Gilvan e sua equipe, são articulados com facilidade em razão de toda a rede de relações estabelecidas no cotidiano das atividades.
O grupo social que se forma na malha das relações que produzem e que são produzidas pela capoterapia, é sólido. Relações familiares seguem esse fluxo e se tornam parte disso. Filhos e netos se orgulham em estarem presentes nos eventos e manifestações da capoterapia. Ninguém quer ficar de fora!
O carinho e a felicidade que emana das reuniões e sessões de capoterapia são contagiantes. O sorriso das pessoas, os abraços ostensivos, tudo traduz essa união e esse espírito coletivo de crescimento de paz, somado, multiplicado pela porção de cada coração ali enfileirado. Uma só voz, respondendo em coro as perguntas cantadas pelo puxador na eterna festa, que só para quando precisa ouvir as palavras e reflexões sábias e cheias de emoção do mestre da festa, o Mestre Gilvan.
Assisti ao começo desse movimento com uma felicidade e uma empolgação que hoje sei comedida e cautelosa... Era muito acreditar no sucesso maravilhoso que o trabalho do meu amigo Mestre Gilvan atingiria com o andar da carruagem do seu esforço e com a colaboração de pessoas tão empenhadas como sua esposa, Dona Sônia, que mesmo no meio atropelado de momentos de difícil coordenação de tantas pessoas e tantas expectativas, nunca perdeu a sua serenidade e o seu sorriso gentil para todas e todos que se acercam dessa experiência.
Vejo o crescer dessa onda e dessa euforia e ainda me sinto distante de tudo, pois a vontade não é estar perto, é estar dentro, dessa maravilhosa emoção de servir a uma causa de tão relevante resultado, propiciando felicidade e melhorias de saúde e qualidade de vida às centenas de senhoras e senhores de qualquer idade, da melhor idade, do melhor da idade, colocando seus lenços coloridos no pescoço e retendo no coração o prazer de cada momento, generosamente oferecendo seus sorrisos e abraços a quem chega perto, num convite irrecusável: venha ser gente com a gente, venha ser feliz na nossa felicidade, venha pra nossa roda, venha pra nossa festa, venha viver a nossa emoção e compor conosco a alquimia no caldeirão de vida borbulhante que enche os olhos e o coração mesmo do mais cético que chega perto. Não dá para resistir.
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