Impressionante até mesmo para quem é muito crédulo, capoeirista convicto, confirmado em anos de estrada e capoeirando nas voltas do mundo, o que a capoeira é capaz de nos trazer...!
Aprovado no concurso da Caixa Econômica Federal, me transferí para Fortaleza em 1979, iniciei aulas de capoeira, na Academia Professor Sá, no Centro da cidade.
O principal sonho que levei no meu embornal de viajante pela geografia do Brasil, era um projeto de criar uma escola de capoeira naquele novo lugar onde passaria a morar por tempo indeterminado.
Muito movimento e muita busca na chegada junto com todas as descobertas da cultura e das pessoas iam me aprisionando numa relação de grande generosidade, em que os camaradas que se aproximavam trazendo suas competências e suas ideologias para engrossar o caldo do terreiro de capoeira que havia implantado, em meados de 1979.
Muitos adolescentes e jovens se firmando naquilo que seria mais tarde o grande berço de bambas da capoeira cearense.
Naquele espaço, mais de cinco centenas de capoeiristas passaram por alí, muitos deles hoje grandes destaques da capoeira no mundo inteiro.
Uma garotada indisciplinada e difícil que exigia grande energia da minha parte, recém instalado no já consagrada no espaço do DCE - Diretório Central dos Estudantes, na Rua Clarindo de Queiroz 133, no centro de Fortaleza.
Mas para compensar tanto trabalho, ali se matricularam alguns ungidos de uma competência e disposição de guerreiros.
Entre essas figuras que se destacaram pela sua dedicação e identificação com a arte e todos os seus desdobramentos, inserindo a capoeira muito além de sua própria pele, tornando-a o seu próprio oxigênio, vital para sua existência e de todas as pessoas com as quais partilha a própria vida. Entre eles estava o Pedro Rodrigues.
Estamos falando de um dos mais importantes capoeiristas cearenses, alguém que irradiou seu trabalho e sua obra na capoeira para além das fronteiras do Ceará, para além do Nordeste, chegando ao Norte, saindo do Brasil e avançando pela Europa, ou seja, mundo afora.
Pessoa de um carisma tão natural quanto o próprio sorriso que ostenta, personagem bem resolvido e de uma tranqüilidade fantástica, Zebrinha, o Mestre Zebrinha de tantos discípulos, é na verdade uma surpreendente revelação dos nativos nordestinos, povo de uma garra incomum, resistente a todos os desafios do clima e das dificuldades materiais que parecem não ter fim, produto de uma injusta distribuição de renda e de atenções de nossos governos.
Porém, longe de qualquer drama ou de se fazer de vítima como produto deste agreste, nasce este verdadeiro mandacaru da resistência, da competência e da força de vontade batizado com o nome de um santo católico que segundo o credo é o guardião das chaves do céu.
Através do retrovisor do tempo, vejo sua chegada pela primeira vez na Terreiro Capoeira, no DCE, usando uma espécie de pijama listado e um olhar desconfiado, e mais tarde junto com seu parceiro Cação, outra criatura que Deus ungiu de muita coragem e também muita molecagem, sendo ele quem levou o amigo Cação (hoje mais conhecido como Gamela) para a capoeira.
Aqueles dois adolescentes só treinavam juntos e também aprontavam muito juntos.
Quase diariamente tinha punição de flexão de braços, por causa de alguma presepada que os dois aprontavam.
Quem visse uma cena dessas jamais seria capaz de imaginar 20 anos depois, o garoto Zebrinha virar o Mestre, mantendo o mesmo sorriso e a mesma espontaneidade e se tornando um verdadeiro touro de força e destreza capoeirística.
Quem conhece capoeira e presta atenção em sua sabedoria sabe que deve aprender com suas músicas e uma delas, muito popular e de domínio público nos ensina:
- Não bata na criança que a criança cresce. Quem bate não se lembra, quem apanha não se esquece...!
A capoeira é essa fonte eterna de sabedoria e a cada dia fica mais claro para os verdadeiros seguidores dessa arte os seus fundamentos mais sutis, como esse que ilustra uma parte pequena da História de vida do camarada e irmão de luta, o Mestre Zebrinha.
Mas eu seria muito infeliz se deixasse de contar aqui um dos momentos mais gratificantes da minha vida na capoeira, quando já em Brasília, depois de anos morando e ensinando no Ceará, onde pude cultivar tantos discípulos, alunos, amigos e camaradas, ao ver chegar em minha aula no Vizinhança Norte, em Brasilia, Distrito Federal, ninguém menos que Zebrinha, meu aluno de Fortaleza, até então por mim considerado apenas um adolescente empolgado, um pouco mais que iniciante na capoeira.
Mas, engano meu! Zebrinha chegou em Brasília movido por sua vontade de aprender mais, de se aprofundar, de se formar em Capoeira... Ele tinha sede de saber mais e entendeu que eu seria a pessoa com quem ele poderia contar pra isso...!
Surpresas da vida. Surpresas da capoeira. Confesso que não acreditava que isso viesse há acontecer um dia e tive que engolir minha descrença com farinha seca!
Ali estava o meu aluno até então, para mim, apenas aluno. Hoje entendo que essa palavra guarda uma visão infeliz de muitos mestres e que também foi minha visão, equivocada e injusta por muito tempo.
Aluno é uma palavra que vem do grego e que significa sem-luz (a, representa uma oposição com luno, que vem de luz...).
O correto era dizer discípulo, pois isso faz muito mais sentido para mim hoje e me faz rever o que em verdade vi naquele momento, pois só um discípulo muito dedicado e fiel é capaz de se deslocar rumo ao desconhecido e inóspito mundo da capital federal, deixando para trás a familia, o seu lugar seguro entre os seus espaços e referências, enfrentando os próprios limites, medos, limitações, falta de dinheiro, etc.
Só hoje, Zebrinha, posso compreender e digerir o significado do seu gesto!
Na verdade ambos estávamos aprendendo, tanto o discípulo que aprende quando o mestre que dá lição. Essa outra filosofia da capoeira que a cada dia significa muito mais para mim e para todos os capoeiristas de alma!
Aprendiz eterno dessa arte, graças aos desígnios de todos os deuses, seguimos ainda hoje lado a lado, companheiros e amigos, camaradas e irmãos de arte.
É sempre gratificante saber que o tempo não destruiu, muito pelo contrário, forjou mais sólidos em cada um de nós os traços e as marcas do tempo, nos calos da alma e nos olhos de eterna observância e aprendizado, dos caminhos do berimbau, Zebrinha!
Confesso que ao receber uma ligação e o convite para o lançamento do Grupo Legião, fui tomado de alegria, não pela minha participação nisso, embora enaltecido naturalmente, mas sim pela alforria que isso significava para você e seus discípulos!
O garoto que conheci e que um dia dei a mão para ensinar os primeiros passos na capoeiragem era agora um mestre indiscutível e consagrado pelos próprios méritos...!
Maior surpresa ainda me aguardava no momento em que, numa quadra na beira-mar, se alinharam às centenas os membros do novo grupo, uma legião de mandacarus, guerreiros honrados e bem-aventurados que seguiam os passos de um grande mestre, a quem um dia tive a honra de ensinar alguns fundamentos...
Mais do que um motivo de orgulho, o que pude perceber foi que o Ceará ganhava ali um novo líder inconteste da capoeira, independente e gentil, competente e sincero, jogo duro e coração mole...!
Naquele momento também pude entender que estava criada uma nova safra de capoeiras, garotos e homens de olhar sereno para o amanhã do seu grupo, do seu Estado e de sua arte.
Mas não pude deixar de ver a ternura da sua companheira Tereza, a quem o tempo de anos de trabalho e de solidária presença em sua vida, não incomodou em nada e que se tornara uma carismática organizadora dos meios e dos fins do trabalho do Grupo Legião, ostentando uma paciência e uma dedicação competente e delicada gerindo tudo em volta.
Nisso pude também compreender uma das razões do sucesso deste guerreiro.
Mais tarde na casa deles, pude ver mais de perto a profundidade dessa parceria.
Pude notar nas palavras e na atenção a uma centena de pessoas, a clareza das decisões e na objetividade das orientações, mais que uma esposa, o Mestre Zebrinha tem ao seu lado uma guerreira, uma obstinada mulher, cujo amor pelo companheiro era mais uma bênção que advinha dos céus sobre a cabeça, o coração, o corpo e alma deste líder-mestre, ou mestre-líder...
Ela é com certeza um dos mananciais que nutrem aquela montanha de músculos e de disposição que pulsa na energia do Mestre Zebrinha.
Mas o caminho de um aprendiz da Arte substantiva da Capoeira não pára nunca de crescer.
As distancias que alcança a influencia e a presença de pessoas como o Mestre Zebrinha vão cada vez mais além.
De Fortaleza para o Ceará. Do Estado para o Nordeste. Do Nordeste para o Brasil todo.
E inevitavelmente chegou para além-mar as marcas do trabalho e da capoeira do Mestre Zebrinha.
Pude presenciar um dos seus discípulos há cerca de dois anos passados (2007), quando conversávamos calmamente numa barraca de praia em Fortaleza, provocado por mim, que o perguntei se ele afinal estava no grupo de um outro mestre do Ceará e ele me afirmou com uma naturalidade e uma convicção que me impressionaram que a relação dele com o outro grupo era apenas de natureza profissional e que o seu verdadeiro Mestre, primeiro e único é e sempre será o Mestre Zebrinha.
Afinal, em tão poucas páginas e em poucas palavras não é possível, pelo menos não acredito, falar do Mestre Zebrinha ao ponto de fazer justiça ao seu trabalho e a sua pessoa.
Digo isso para me desculpar de antemão pelas pouquíssimas coisas que me ative a escrever sobre ele e seu trabalho.
Não posso me permitir mais ocupar a atenção de quem abra um livro, à cata de maiores conhecimentos sobre essa pessoa tão simples e nobre, muito além do que aqui registro, mas falta algo que não me perdoaria deixar de fora...
A sua ida às origens, buscando a água de beber de nossos ancestrais...
Assim descreveria a narrativa e a empolgação de Zebrinha ao pisar o solo sagrado de Luanda, Angola, a Aruanda que tanto cantamos na capoeira!
Pessoalmente vivi essa experiência ao chegar pela primeira vez ali, de onde veio tanto para nós... Tanto de nós... Tantos de nós... A gênese de nossa cultura e de nossa biologia.
Tocar o continente negro é uma das mais incríveis experiências na vida de um capoeira, alguém que guia sua existência sempre com base em nossas raízes.
Zebrinha não chegou à África como um turista para fazer um safári.
Ele chegou ali como conseqüência de sua caminhada no terreno do aprendizado no caminho do berimbau, algo tão importante quanto o dia em que foi batizado.
Após tantos anos, tantas lutas, derrotas e vitórias, Zebrinha fez o que seria mérito de poucos de nós, ao colocar os seus pés na África!
A emoção é indescritível! É como um sonho. É sentir-se no berço de nossa civilização e ver fluir em nós todas as heranças que guardamos quase sem perceber dentro de nosso arsenal de informações, de nossa cultura, de nosso sangue e de nossa alma!
A capoeira e a África são uma coisa só! Por mais que a tenhamos enriquecido ou embranquecido, ela é a nossa genética tribal que se traduz em nossos modelos mentais e sociais que de lá vieram!
Ver e tocar os nossos irmãos africanos é maravilhoso! É uma bênção tão linda quanto um hino que toca o coração de um capoeira.
E Zebrinha chegou até lá!
Ele tem todo o motivo para se sentir muito orgulhoso e feliz!
Esse deve ter sido para ele – como foi para mim – um prêmio como nunca esperou dia algum!
O tipo de premio que a gente não concorre. Ganha ou não ganha. E a maioria não ganha.
Para terminar minhas parcas e desnecessárias palavras sobre o Mestre Zebrinha sob o ponto de vista muito elementar dos ínfimos momentos que convivemos, sua vida e sua obra, objeto muitíssimo simplificado aqui neste livro, invoco a Che Guevara, quando dizia:
Existem homens que lutam um dia e são bons.
Existem homens que lutam um ano e são melhores.
Existem homens que lutam dez anos e são excepcionais.
Mas existem homens que lutam a vida toda e esses são imprescindíveis!
E eu me arriscaria a dizer, plagiando Che Guevara: existem homens que lutam a vida inteira e um dia acabarão sendo reconhecidos e justiçados e um deles se chama Pedro Rodrigues de Lima Filho, o Mestre Zebrinha, capoeira cearense. Figura de raiz. Do dendê. De axé. Do bem!
Yêh, viva Zebrinha, camará!
Brasília – DF, FEV2009