Entrevista concedida a Cláudia Santos
Mestre Squisito, para ele a capoeira é um instrumento de inclusão social
Falta a gente saber para onde quer ir com a capoeira
Conhecido como Squisito devido a seu porte alto e magro e fisionomia marcante, o mestre de capoeira Reginaldo da Silveira Costa, 56 anos, também é mestre em Sociologia e especialista em Educação Física e Ciência da Informação. Mineiro, do município de Montes Claros, vive em Brasília há 36 anos e é contrário à violência na capoeira, encarando essa arte através de seus aspectos culturais, históricos e sociológicos. Em entrevista exclusiva à Informação Social, durante o 6° Open Fest Internacional de Capoeira, ocorrido em Palmas – TO, no mês de dezembro, Squisito falou sobre os problemas e desafios enfrentados pela capoeira no Brasil e no Tocantins. Por Cláudia Santos
Informação Social - Fale sobre você e como começou na capoeira.
Squisito - Olha só, eu cheguei em Brasília em 1973 e comecei a andar por Brasília, próximo a um lugar que foi o meu primeiro emprego, que era um jornal, e lá tinha a academia de capoeira do mestre Tabosa. Eu sempre passava ali perto e via aquele movimento. Com esse contato, muito rapidamente eu me interessei pela capoeira. Então eu cheguei naquele ano e, já em agosto de 1974, eu comecei a fazer capoeira com o mestre Tabosa. E, desde então, nunca parei. Com uma semana ganhei o nome de Squisito.
IS – E por que esse apelido?
Squisito - O capoeirista tem características que muitas vezes são meio como a sombra dele. Por exemplo a pessoa ser meio exótica ou muito alta. Eu comecei com 20 anos e já era adulto, muito magro, muito desengonçado. E como pra começar a capoeira todo mundo é um pouco esquisito... E eu era um pouco mais esquisito que a média! Na primeira e segunda semana de treino ele (mestre Tabosa) colocou alguém para treinar comigo e aí disse: Você aí, esquisito! Eu olhei primeiro para conferir se já tinha alguém com essas características. Aí ele falou: É você bem aí mesmo! Nunca discuti isso e, depois de um certo tempo, percebi que isso me dava uma guarida. Podia errar, fazer um monte de bobagem no jogo, e como eu era o esquisito, isso era uma espécie de álibi. Aí foi ótimo! E mais tarde eu percebi que os capoeiristas, de modo geral, que tem maiores dificuldades, que tem mais coisas para superar, são os que se empenham mais, se identificam mais. As pessoas que tem mais dificuldades, de modo geral, abraçam a capoeira de uma maneira mais profunda.
IS – E você superou suas dificuldades através da capoeira?
Squisito - Superei a maioria! Pelos menos aquelas mais conhecidas, pois às vezes você tem sombras no seu psiquismo e nunca irá superar porque você desconhece. Mas aqueles medos, aquelas inseguranças... Um adulto jogando capoeira aos 20 anos, tem uma tendência de ser uma pessoa muito limitada. Então eu, por exemplo, jamais superei necessariamente as limitações, mas passei a conviver bem com elas, a aceitar, a não tentar brigar com as minhas características físicas, já que sou um cara alto. E eu nunca tentei fazer nenhum tipo de “presepada” que dependesse dessa alavanca com as costas, esse salto no escuro... Nunca me meti com esse tipo de coisa. Na verdade eu até tentei, mas tomei uma queda tão feia que desisti rápido! (risos) Vi que isso não era para mim e procurei desenvolver bem outras coisas. Desenvolvi um boa velocidade, elasticidade, uma boa noção de jogo. Depois de algum tempo, eu me incursionei por um outro terreno que, para mim, era uma negação absoluta, que era a musicalidade. Porque a maioria de nós tem essa limitação. E eu sou um grande ouvinte de música. Adoro muitos tipos de música. Mas eu próprio ser o músico, ter a capacidade de me articular com a música? Mas a capoeira acaba te empurrando para isso e aí cheguei a fazer berimbaus para mim mesmo, desenvolvendo mais um talento que era a capacidade de ser um artesão. A capoeira te induz a isso. É uma coisa que não tem limites. Todos os caminhos que você quiser explorar com a capoeira, você pode. Ela sempre vai lhe trazer novos desafios. Em alguns você se dá bem, em outros, nem tanto.
IS – A capoeira é luta, dança, cultura? Quais elementos compõem essa arte?
Squisito - É muito difícil apontar todos eles em um papo informal e despreparado assim. O que posso te dizer é que eu tenho um livro que escrevi chamado Capoeira: o caminho do berimbau, onde eu tento discutir isso que você está perguntando, quais são os potenciais da capoeira. Então a capoeira tem uma musicalidade muito forte, que influencia no ritmo do corpo, na capacidade de dançar, que você pode ter antes de se iniciar na capoeira. E depois de fazer algum tempo de capoeira, provavelmente seu domínio corporal e rítmico provavelmente serão ampliados, assim como sua noção de espaço, de movimento e de equilíbrio. Outro elemento, ainda, da capoeira, é defendido por um estudioso lá de Brasília. Ele andou descobrindo que a capoeira amplia seu plano de visão, que ele chama de visão periférica da capoeira. E a capoeira aumenta suas percepções para um ângulo que praticamente nenhuma outra coisa no mundo faz a pessoa desenvolver. Eu estou conversando com você eu estou vendo as cadeiras lá atrás. Esse é um desenvolvimento que a capoeira te conduz a isso. Porque dentro do jogo, como a capoeira é muito dinâmica... de giro, de círculo, de movimentos... E num espaço restrito, você acaba tendo que aumentar o seu ponto de percepção. Isso é um coisa que nenhum outro esporte consegue alcançar.
IS – Esses são aspectos de influência sobre o corpo?
Squisito – Sim, a capoeira é inteligente do pondo de vista corporal. Ela também consegue alguns mecanismos de alavanca, de equilíbrio, de ritmo que acaba se tornando um instrumento de inteligência corporal. Um professor de Fisiologia do Exercício disse numa palestra sobre a inteligência desse esporte. Disse que a capoeira é uma prática que desenvolve a maior inteligência corporal que ele já viu e analisou. Por causa das possibilidades que um jogo, um treino e um exercício de capoeira te leva, ela vai desenvolver inúmeras possibilidades de você encontrar mecanismos, esquivas, alongamentos, percepções, ritmos, velocidades, explosões. A capoeira acaba proporcionando tudo isso. Ou seja, uma inteligência corporal impressionante. Eu tenho visto isto com os pais e mães com crianças pequenas e que ficam impressionados com o que a capoeira induz os filhos a fazerem. Mas ainda acho que um outro potencial desconhecido e pouquíssimo utilizado da capoeira é o fato dela ser um mecanismo de cidadania. Através do sentimento de pertencimento que ela proporciona, a capoeira é um instrumento de inclusão social que atinge não só pessoas que tenham um problema de risco social, mas para a inclusão de qualquer grupo humano. Até para os europeus, que são cheios da grana e tem dificuldades para se sentirem parte de uma convivência social, a capoeira traz isso para eles. Então por isso que eu digo: é praticamente impossível alguém mapear todas essas coisas.
IS – Existe uma função importante que também existe nessa arte, que é o ambiente histórico cantado nas músicas de capoeira, falando de grandes capoeiristas ou das relações entre senhor e escravo no período colonial.
Squisito - É tradição oral que se chama isso. A tradição oral é um dos fenômenos que a capoeira é detentora, por ser descendente de uma cultura com características afro-brasileiras, principalmente africana, trazendo uma relação tribal, uma tradição oral e ritual. Então a capoeira vem trazendo esses elementos de tempos imemoriais, que estão dentro da cultura da capoeira. Então a tradição oral é a grande forma de reprodução da cultura da capoeira.
IS – Qual a diferença entre a Capoeira Regional e a Capoeira Angola?
Squisito - Você irá encontrar algumas definições. Primeiro a Capoeira Angola está dentro da capoeira regional. O mestre Bimba, que criou a Capoeira Regional, primeiro foi angoleiro. E ele trouxe o uso do berimbau, trouxe muitas músicas que ele ouviu, mudou um pouco o ritmo e a forma de cantar. E a capoeira é uma coisa dialética, como dizia o mestre Onça Tigre. Então ela vai dialogando com as cenas, com as condições, com os momentos da história. Então a Capoeira Regional é um mecanismo de se criar um diálogo com uma época em que, na passagem do período colonial para o período moderno no Brasil, existia uma lacuna. A capoeira não tinha como se tornar uma coisa que se pudesse transitar no meio do consumo do século XX na forma original dela. Ela não tinha um código de organização, não tinha metodologia, não tinha fundamento pedagógico, nem estrutura organizacional dela própria. E o mestre Bimba trouxe isso tudo. Empacotou tudo isso e, na verdade, o mestre Bimba não chamou de Capoeira Regional. Ele criou um negócio chamado de Centro de Cultura Física Regional, como se fosse assim dentro da região da Bahia. Lá ele criou um mecanismo de aprendizado de uma cultura física, que era daquela região. E essa malandragem dele de criar esse nome, mesmo todo mundo sabendo que o que ele ensinava era capoeira, fez com que a regional de Bimba se destacasse. Mais tarde a capoeira angola apropriou um monte de coisas da capoeira regional, apropriou festas de eventos, batizados de capoeira, formatura de capoeira, graduação de capoeira. E a Capoeira Angola seguiu alguns passos da Capoeira Regional até onde interessava, mas a Capoeira Regional tem a capoeira angola dentro de si, não tem como separar.
IS – Ouvi falar que existem cada vez menos iniciantes na capoeira, é verdade? Por que isso estaria acontecendo?
Squisito - A capoeira vive um momento de crise. Ela cresceu muito nas décadas de oitenta e noventa. Ela teve um boom de crescimento e os próprios capoeiristas não souberam administrar essa vantagem. Inclusive eu fiz um estudo e constatei que dos capoeiristas, com os mais variados níveis, o grupo que tem menos gente é o dos sem corda. Ou seja, está existindo uma inversão da pirâmide social da capoeira. E isso é um sintoma absolutamente claro de que a capoeira perdeu a força, perdeu a força social dela.
IS - E no Tocantins?
Squisito – Acredite, o Tocantins não foi diferente dos outros Estados no sentido de crescimento. No final da década de 1980 e início de 1990, chegou o Soldado (capoeirista) aqui e ele fez uma química forte social por aqui. Arrastou centenas de capoeiristas para a capoeira no Estado. E durante a década de 1990, a capoeira no Tocantins cresceu, cresceu, cresceu. Mas a partir da virada do milênio ela começou a entrar em decadência, pela mesma razão que aconteceu em todo o Brasil. No Tocantins, a Terreiro continua, talvez, sendo o grupo mais forte. O único grupo, talvez, que consiga reunir tanta gente num evento. Mas no passado, a gente chegou a fazer batizado aqui com 500 pessoas, coisa que não acontece mais.
IS – Mas qual o motivo dessa decadência na capoeira?
Squisito - Os próprios capoeiristas, via de regra, são em parte responsáveis por isto. Existe um conflito, uma luta de poder que acaba implodindo a capoeira. E existe uma outra coisa também na sociedade que é o chamado modismo: o que tá na moda hoje, pode não estar na moda amanhã. E as pessoas vão muito atrás do que todo mundo está fazendo. Esse é um mal do ser humano de querer estar sempre onde todo mundo está. Por isso vive em cidades apertadas, em ruas cheias de carros. A gente tem os dias da semana onde todo mundo trabalha igual. Podia muito bem um grupo ter feriado na segunda, outro grupo ter descanso na terça, aí você diluía a loucura da organização humana. Mas a gente não consegue! Então é um "boom" da moda que passa e a gente também passou. Esse é um outro lado.
Outro fator que considero é que nos falta um pouco de horizonte. Os grupos, de um modo geral, não sabem bem o que querem. Se você sair andando nessas secretarias do Estado perguntando o que os capoeiristas vieram oferecer e pedir, 99% deles foram lá pedir exatamente a mesma coisa: verba para fazer batizado, para fazer camiseta, para fazer cartazes. Ou seja, falta criatividade, falta horizonte, falta a gente saber para onde quer ir com a capoeira. E aí vou lembrar Sêneca, que lá pelo ano 10 d.C. disse que não existem ventos a favor para o marinheiro que não sabe para onde quer ir. Esse mal, em grande parte, está instalado dentro da capoeira.
IS – E que horizonte seria esse?
Squisito - Eu escrevi uma vez sobre o que chamo de Síndrome da Malta, que existe dentro da capoeira. Ela é mais ou menos o seguinte: o capoeirista tem um sentimento de pertencimento a um grupo, que rejeita o que é estranho. Para o capoeirista, o estranho, que é de outro grupo, vai sempre querer derrotá-lo, demonstrar que é melhor do que ele. E a maioria das vezes, quem coloca esse tipo de “pilha” é o próprio mestre, que alimenta a competição, o medo, o conflito e o isolamento. Esse isolamento impede a união dos capoeiristas para que se busque uma mesma política, um crescimento de todos. A gente unido, definindo o que somos, o que queremos e o que podemos tornaria possível materializarmos possibilidades enquanto arte, enquanto cultura, enquanto jogo, enquanto educação. Eu já tentei propor isso, inclusive como lei federal, que a capoeira se tornasse um conteúdo para a disciplina e não uma disciplina que pega um capoeirista pra dar aula ali no quintal e diz que a capoeira está na escola. A capoeira vai estar na escola o dia que o professor de história chegar, abrir a página e dizer: hoje vamos falar sobre o fenômeno da capoeira na história do Brasil. Sobre como os políticos se apropriaram da capoeira, sobre o que significou a guarda negra no Rio de Janeiro. Sobre como a capoeira participou da guerra do Paraguai ou sobre qual é o papel da capoeira no debate abolicionista. O professor de história poderia ensinar isso e para isso não é necessário um professor de capoeira. E aí você criaria dentro da sociedade brasileira uma consciência sobre a capoeira, para que essa pessoa pudesse ser uma aluno de capoeira, mas com alguma noção do problema, do que se tratava. Porque quando a pessoa chega sem informação nenhuma, em que ele vai acreditar? Na primeira coisa que ele ouvir! E provavelmente essa primeira coisa não será uma informação consolidada.
IS – Alguns problemas apontados por capoeiristas no Tocantins sobre o esporte no Estado é a prática de auto titulação pelos praticantes. Por exemplo, o capoeirista se auto intitula mestre de capoeira, sendo que estaria em um nível inferior, só para conseguir com mais facilidade emprego como professor de capoeira. Seria importante fazer o controle da qualidade dessa capoeira?
Squisito – Só é possível pensar em regulação no momento em que a sociedade se envolver com a capoeira. Porque o envolvimento que a sociedade tem com a capoeira é muito periférico. A pessoa é diretora de uma escola e conhece um capoeirista qualquer, aí ela o convida pra fazer uma apresentação. Então ela leva meia dúzia de pessoas, joga lá e você olha aquilo e acha que o cara sabe tudo de capoeira. Então ela o convida para dar aula em uma escola. Então a sociedade ainda pensa na capoeira como uma coisa que é uma manifestação desorganizada... de uma molecada que se reúne para fazer nada e dali muitas vezes saem alguns que são perigosos. Uma vez cheguei em Fortaleza para falar em uma entrevista ao vivo. A gente estava fazendo um evento em Fortaleza e o tema do evento era “Capoeira contra as drogas e a violência”. Quando a gente entrou na cena do programa, um programa com muita audiência, um espectador queria fazer uma pergunta no ar. Então colocaram o cara no ar falando assim: “Como que vocês querem falar de paz na capoeira se o próprio professor do meu primo quebrou o queixo dele em dois lugares e mandou ele para o hospital? Que paz é essa que vocês querem?!” Essa pergunta foi à queima roupa, no programa ao vivo! Então eu falei que a única coisa a fazer é mudar de professor. Existe opção! Agora se você prefere escolher um cara valentão para ensinar seus filhos, seu primo. É uma escolha sua! Mas eu garanto para você que existe opção. Só depende do seu nível de informação. Se você vai colocar o seu filho para aprender alguma coisa, procure saber com quem ele está aprendendo.