sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Prefácio do Livro: Poemas do M. Adelmo e M. Sapeba

 

 


Uma reverência à Emoção da Capoeira

 Esse é o livro de dois grandes poetas contemporâneos de nossa Capoeira. Obstinados pela Arte, pela ginga e pela rima. Esse é o perfil que estamos aqui falando e que o momento coloca nas mãos dos leitores e leitoras, como qualquer capoeirista ou poeta, interessado ou curioso, seja apenas uma pessoa que busca conhecer os meandros de nossa cultura popular, que queira mergulhar no mar profundo do simbolismo, do sentimento e da alma dos capoeiras... É disso que trata o livro: poemas que versam sobre nossa Arte, nossa ginga, nosso povo, nossa força e nossa energia sagrada.

Mas, ao me deparar com este livro, fiz uma pergunta retórica: de onde nasce a poesia, mais especificamente a poesia da capoeira...?

Ela vem de uma ginga da alma, diante da beleza, da perplexidade, dos desafios que nos movem. Que sempre vivemos. Vem da sensibilidade e do sentimento. A mesma emoção que explode em nosso peito, toda vez que ouvimos um berimbau viola chorar notas de um tempo impreciso, ecos de um passado sem nome, sem lugar certo, apenas mensagens que ecoam em nosso peito, como notas musicais de uma canção de liberdade, que vem sendo reproduzida há séculos e esses poetas captam essa emoção, essa energia.

Esses versos que você irá ler no livro são trazidos pelos ventos da nossa História mal contada, deturpada por informações deturpadas, notícias comprometidas por uma sociedade de classes, que empurra pessoas para a categoria de sub gente, ou pior, categorizados como Coisas, objetos sem alma, através do que nossos ancestrais foram empurrados para o canto da realidade, inverdades criadas, contadas e recontadas pelos dominadores, pela elite que deteve a fala, os registros, o discurso dominante, a ciência e a imprensa e, mesmo assim, poetas, cantadores, mestres e guerreiros lutaram e escrever uma outra mensagem no tempo, que foi registrada no próprio corpo[1], descrita nos cânticos, nas vozes que reproduzem ecos daqueles guerreiros que tombaram, mas escreveram uma mensagem que chegou até nós, até nossos dias, pois escreveram outras mensagens com sua luta e sua vida.

Nossos poetas, autores deste livro podem agora entoar outros tons a essa música que encontramos ao pé berimbau. Podem recontá-la. Podem rimar com sua ginga de palavras essa verdade, oculta nos corpos negros, nos olhos atentos, nas palavras de mães aos seus filhos, entoando canções de ninar, nas vozes dos mestres da tradição, reproduzindo os sons do coração dos guerreiros de ontem, de hoje e de sempre!

Nietzsche disse que estamos sempre revivendo os eventos, num eterno repetir da História. Ele chama isso de o eterno retorno do mesmo... Mas nós, capoeiras, não ficamos prostrados diante dessa situação, como coadjuvantes. Nós vamos à luta. Podemos olhar e ver beleza, onde parecia haver apenas cinzas, podemos olhar nos olhos da trajetória da capoeira, onde informações corrompidas transformam heróis resistentes em bandidos e ver o que poucos viram ou veem: a beleza das lutas dos nossos ancestrais, que pularam na arena das manipulações e enfrentaram as adversidades, ameaças e tantas outras formas de discriminação, negação e humilhação.

Encontramos beleza em tantas coisas, na ginga, na resistência, nos cânticos dolentes ao som de nosso berimbau, instrumento ancestral, emitindo notas de discórdia com aqueles tempos, aquelas regras, aqueles algozes.

A poesia soa como um olhar analógico em um mundo digitalizado, binário, mecânico... É ela que coloca um sorriso em nosso rosto, mesmo quando o mundo inteiro chora ou se ajoelha diante de uma pandemia e outras tantas tragédias. Entre elas o isolamento, a solidão, o individualismo, pois mesmo quando lutamos em nossos jogos, existe um dom maior que nos impulsiona, que é o amor... amor à Arte. Amor de uns aos outros. Amor à vida, onde nos agarramos com todas as forças, pois sobreviver é a nossa rima... nossa meta, nossa cura!

A força dos versos nos incitam a lutar, a dialogar com os desafios e encontrar um caminho por onde sair de rolê, onde manter nosso humanismo, é isso que nos faz guerreiros do bem, vigilantes da justiça, lutadores uns pelos outros, criando uma irmandade planetária, lutando para que nunca estejamos deitados no berço esplendido da mediocridade.

É isso que a poesia faz. Ela nos traz para o plano superior da nossa energia, nossa capacidade de luta. Ela é um grito que irrompe do escuro da noite, vem da dimensão mais profunda do subconsciente, nos dá força para enfrentar todos os sentidos, os bloqueios, e outras formas de pressão das sentinelas da mesmice. Ela nos ensina a extrair de nossa alma as fragrâncias e fragmentos do que seria dor, se não fosse ardor, se não fosse o desejo libertário que chega até a garganta e brada sons e palavras, mantras de lutas que ecoam nos poetas, como são esses dois que assinam e produzem este livro: Mestre Adelmo e Mestre Sapeba.

Chico Buarque disse numa música: acima do coração, que sofre com razão, a razão que volta do coração. E acima da razão a rima...  

A poesia busca sintonizar-nos com o dom do plano divino, de Deus, que sopra sutilmente, corrigindo os sons dos ventos, afinando o trinar dos pássaros. Com essa sintonia, os poetas buscam encontrar o sagrado nas notas do berimbau, no mantra dos corais das vozes do povo, que são capazes de produzir uma massa de energia que extrapola os limites audíveis e chegam até as entranhas da nossa alma.

Capoeiras de todos os tempos empunharam suas vestes de guerreiros, emitiram canções com sua versão ritmada das coisas, seu ritmo e suas rimas, extraídos dos acordes dos sonhos de Salomão... poemas que são vozes uníssonas de todos os cantadores de todos os tempos, vozes que são produzidas no vibrar das vidas, da história ancestral.

Ninguém jamais poderá tirar um poeta dessa roda, da arena cósmica da capoeira, rimando o começo, o meio e o fim, o diapasão da verdade que herdamos desde o primeiro yeh! que um guerreiro gritou. Ele dizia o que dizemos agora, não mais aceitaremos os grilhões da mediocridade, da covardia, que há tempos assaltam a humanidade, empurrando-nos para o silêncio solitário das gaiolas que são construídas e empilhadas, empurrando as pessoas para dentro delas.

O capoeirista usa sua ginga e o poeta usa o seu verso. As rimas e a ginga dialogam com a caminhada de cada um, capoeira, ser humano que não mais aceita ser vil, servidão, servir de vilão na festa da falsidade ideológica, da discriminação e do preconceito.

Nossos poetas serão sempre a nossa voz.

Terão sempre sua voz e sua vez, para confrontar os grilhões, os capitães do mato, ginga entre os arranha-céus, com garra e até desdém contra os podres poderes, as parábolas, os parâmetros... os parágrafos... as falsas frases que tentam sufocar o coração dos incautos...!!

Só temos a agradecer, por poder degustar essa leitura, essa ginga, essas rimas, essas palavras, que confortam nosso coração ante a injustiça de nosso tempo.

O axé deste livro chegará principalmente àqueles que conseguem sentir a vibração e a força da Capoeira Ancestral pulsando em suas veias!

 

 



[1] Recomendo o livro Dança de Guerra, de Julio Cesar de Tavares, Ed. Nandyala, 2012. O livro é produto de uma pesquisa do autor no Curso de Sociologia da Universidade de Brasília. Pioneiro e imprescindível.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Adeus Mestre Zé Renato!

 


É claro que me lembro a primeira vez que nos encontramos!!

Eu estava realizando o primeiro evento de capoeira em Fortaleza, em dezembro de 1979, e você apareceu no meio da festa.

Eu não sabia de você ou do seu trabalho e presença no cenário da capoeira do Ceará.

Depois pude ver você diversas vezes, talvez menos oportunidades do que nós dois gostaríamos, mas a capoeira não marca encontro.

Eles simplesmente acontecem...

Só sei que você sempre foi um ser humano acima de todas as diferenças...

Para quem não sabe - e foi você que me contou - o seu estado de saúde se tornou instável desde o dia que você tentou passar seu pai por cima do alambrado do estádio do Fortaleza, para que ele fosse socorrido pela equipe médica que estava dentro do campo...

Nessa tentativa desesperada de salvar o seu pai, você foi espancado violentamente pela polícia que estava protegendo o campo, pois você não suportou ver o seu pai ser agredido por aqueles policiais e você comprou a briga com eles, enfrentando todos...

Esse episódio te deixou para sempre com sequelas severas...

Você nunca mais pode jogar capoeira...! Sua arte, sua grande paixão estava para sempre afastada de você...!

E sua vida seguiu como você pode viver!!

Eu trago em mim seu semblante sempre gentil comigo...

Mesmo quando pessoas sem noção tentaram nos dividir, nos tornar adversários ou inimigos, isso nunca funcionou, pois você me tinha na mesma conta que eu a você...

O meu respeito a sua história de vida sempre foi algo maior do que qualquer conversa fiada que alguém possa ter tentado.

Hoje eu sei que você está onde merece, tanto na memória dos capoeiras das gerações atuais e futuras, quanto nos reinos de Deus, onde os guerreiros tem lugar!

Eu choro a sua morte, mas sorrio pela sua história e amizade que sempre me dedicou...

Sei que as marcas das lutas em seu corpo estão curadas, pois você está agora noutro plano...

E nós, todos os capoeiras de alma, oramos e rendemos homenagem a sua história e o lugar do pódio dos desbravadores da nossa Arte, pioneiros ancestrais que construíram a estrada por onde seus discípulos irão caminhar...

Os que tenham realmente compreendido o que é ser um guerreiro!!!

Vai em paz meu irmão!!

Luz na sua ascensão!!

Leva meu carinho e meu respeito eterno!!!

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