Uma reverência à Emoção da Capoeira
Mas, ao me deparar com este livro, fiz uma pergunta retórica: de onde nasce
a poesia, mais especificamente a poesia da capoeira...?
Ela vem de uma ginga da alma, diante da beleza, da perplexidade, dos
desafios que nos movem. Que sempre vivemos. Vem da sensibilidade e do
sentimento. A mesma emoção que explode em nosso peito, toda vez que ouvimos um
berimbau viola chorar notas de um tempo impreciso, ecos de um passado sem nome,
sem lugar certo, apenas mensagens que ecoam em nosso peito, como notas musicais
de uma canção de liberdade, que vem sendo reproduzida há séculos e esses poetas
captam essa emoção, essa energia.
Esses versos que você irá ler no livro são trazidos pelos ventos da nossa
História mal contada, deturpada por informações deturpadas, notícias
comprometidas por uma sociedade de classes, que empurra pessoas para a
categoria de sub gente, ou pior, categorizados como Coisas,
objetos sem alma, através do que nossos ancestrais foram empurrados para o
canto da realidade, inverdades criadas, contadas e recontadas pelos
dominadores, pela elite que deteve a fala, os registros, o discurso dominante,
a ciência e a imprensa e, mesmo assim, poetas, cantadores, mestres e guerreiros
lutaram e escrever uma outra mensagem no tempo, que foi registrada no próprio corpo[1],
descrita nos cânticos, nas vozes que reproduzem ecos daqueles guerreiros que
tombaram, mas escreveram uma mensagem que chegou até nós, até nossos dias, pois
escreveram outras mensagens com sua luta e sua vida.
Nossos poetas, autores deste livro podem agora entoar outros tons a essa música
que encontramos ao pé berimbau. Podem recontá-la. Podem rimar com sua ginga de
palavras essa verdade, oculta nos corpos negros, nos olhos atentos, nas
palavras de mães aos seus filhos, entoando canções de ninar, nas vozes dos
mestres da tradição, reproduzindo os sons do coração dos guerreiros de ontem,
de hoje e de sempre!
Nietzsche disse que estamos sempre revivendo os eventos, num eterno
repetir da História. Ele chama isso de o eterno retorno do mesmo...
Mas nós, capoeiras, não ficamos prostrados diante dessa situação, como
coadjuvantes. Nós vamos à luta. Podemos olhar e ver beleza, onde parecia haver apenas
cinzas, podemos olhar nos olhos da trajetória da capoeira, onde informações
corrompidas transformam heróis resistentes em bandidos e ver o que poucos viram
ou veem: a beleza das lutas dos nossos ancestrais, que pularam na arena das
manipulações e enfrentaram as adversidades, ameaças e tantas outras formas de
discriminação, negação e humilhação.
Encontramos beleza em tantas coisas, na ginga, na resistência, nos
cânticos dolentes ao som de nosso berimbau, instrumento ancestral, emitindo
notas de discórdia com aqueles tempos, aquelas regras, aqueles algozes.
A poesia soa como um olhar analógico em um mundo digitalizado, binário,
mecânico... É ela que coloca um sorriso em nosso rosto, mesmo quando o mundo
inteiro chora ou se ajoelha diante de uma pandemia e outras tantas tragédias. Entre
elas o isolamento, a solidão, o individualismo, pois mesmo quando lutamos em
nossos jogos, existe um dom maior que nos impulsiona, que é o amor... amor à
Arte. Amor de uns aos outros. Amor à vida, onde nos agarramos com todas as
forças, pois sobreviver é a nossa rima... nossa meta, nossa cura!
A força dos versos nos incitam a lutar, a dialogar com os desafios e
encontrar um caminho por onde sair de rolê, onde manter nosso humanismo, é isso
que nos faz guerreiros do bem, vigilantes da justiça, lutadores uns pelos
outros, criando uma irmandade planetária, lutando para que nunca estejamos
deitados no berço esplendido da mediocridade.
É isso que a poesia faz. Ela nos traz para o plano superior da nossa
energia, nossa capacidade de luta. Ela é um grito que irrompe do escuro da
noite, vem da dimensão mais profunda do subconsciente, nos dá força para
enfrentar todos os sentidos, os bloqueios, e outras formas de pressão das
sentinelas da mesmice. Ela nos ensina a extrair de nossa alma as fragrâncias e
fragmentos do que seria dor, se não fosse ardor, se não fosse o desejo
libertário que chega até a garganta e brada sons e palavras, mantras de lutas
que ecoam nos poetas, como são esses dois que assinam e produzem este livro:
Mestre Adelmo e Mestre Sapeba.
Chico Buarque disse numa música: acima do coração, que sofre com
razão, a razão que volta do coração. E acima da razão a rima...
A poesia busca sintonizar-nos com o dom do plano divino, de Deus, que
sopra sutilmente, corrigindo os sons dos ventos, afinando o trinar dos
pássaros. Com essa sintonia, os poetas buscam encontrar o sagrado nas notas do
berimbau, no mantra dos corais das vozes do povo, que são capazes de produzir
uma massa de energia que extrapola os limites audíveis e chegam até as
entranhas da nossa alma.
Capoeiras de todos os tempos empunharam suas vestes de guerreiros, emitiram
canções com sua versão ritmada das coisas, seu ritmo e suas rimas, extraídos
dos acordes dos sonhos de Salomão... poemas que são vozes uníssonas de todos os
cantadores de todos os tempos, vozes que são produzidas no vibrar das vidas, da
história ancestral.
Ninguém jamais poderá tirar um poeta dessa roda, da arena cósmica da
capoeira, rimando o começo, o meio e o fim, o diapasão da verdade que herdamos
desde o primeiro yeh! que um guerreiro gritou. Ele dizia o que dizemos
agora, não mais aceitaremos os grilhões da mediocridade, da covardia, que há tempos
assaltam a humanidade, empurrando-nos para o silêncio solitário das gaiolas que
são construídas e empilhadas, empurrando as pessoas para dentro delas.
O capoeirista usa sua ginga e o poeta usa o seu verso. As rimas e a ginga
dialogam com a caminhada de cada um, capoeira, ser humano que não mais aceita
ser vil, servidão, servir de vilão na festa da falsidade ideológica, da
discriminação e do preconceito.
Nossos poetas serão sempre a nossa voz.
Terão sempre sua voz e sua vez, para confrontar os grilhões, os capitães
do mato, ginga entre os arranha-céus, com garra e até desdém contra os podres
poderes, as parábolas, os parâmetros... os parágrafos... as falsas frases que
tentam sufocar o coração dos incautos...!!
Só temos a agradecer, por poder degustar essa leitura, essa ginga, essas
rimas, essas palavras, que confortam nosso coração ante a injustiça de nosso
tempo.
O axé deste livro chegará principalmente àqueles que conseguem sentir a
vibração e a força da Capoeira Ancestral pulsando em suas veias!
[1] Recomendo o livro Dança de Guerra, de Julio
Cesar de Tavares, Ed. Nandyala, 2012. O livro é produto de uma pesquisa do
autor no Curso de Sociologia da Universidade de Brasília. Pioneiro e
imprescindível.